Depois de um sucesso esmagador, os dias ainda lá estão na sua marcha constante. É preciso descolar as horas, não deixar fugir o chão. Salvador Sobral claramente não se deslumbrou com a fama instantânea depois da vitória em Kiev, no Festival Eurovisão da Canção. Voltou à base, aos seus, e ao desafio perpétuo de quem não perde de vista o horizonte artístico. Júlio Resende era já um parceiro, e os dois tinham já tática e estratégia definidas, um caminho de que não querem desviar-se. Entre os projetos comuns, destaca-se Alexander Search, uma banda rock que foi buscar as letras à poesia em inglês daquele heterónimo de Fernando Pessoa. As influências do indie-pop e do jazz fazem do disco homónimo um febril ensaio a partir das capacidades sonhadoras do poeta, canções com o arroubo próprio de quem tem confiança nos instintos da sua improvisão, na busca insaciável de novas aberturas, uma forma de açoitar a realidade com a ficção, para que ela se expanda e provoque um tremor até no mais desinspirado quotiano.
Disse que este projecto surge porque estava farto de tocar sozinho. Também Alexander Search, tido como um pré-heterónimo de Fernando Pessoa, vive uma angústia ligada a um forte sentimento de solidão. O que estava a passar-se na sua vida quando decidiu avançar para este projeto?
Júlio Resende: Estava a atravessar uma fase muito positiva do ponto de vista artístico. Se o jazz pertence a um nicho, no meu caso não estava então a sentir essa limitação. Fiz um disco que se chama Amália por Júlio Resende, que versa sobre improvisação, mas feita a partir de canções que fazem parte da nossa memória coletiva. E este pôs-me a tocar em todas as salas do país, e ainda em salas pelo mundo fora. Estive no Japão, no México, Alemanha, França… Em vários sítios. Mas esgotou-me. Senti que a próxima coisa que eu queria fazer teria de ser coletiva.
Como nasce Alexander Search?
Nasce de eu estar a ler os poemas e estar com vontade de não apenas fazer uma coisa coletiva mas divergente do que já tinha feito. Saiu-me do espírito a banda de rock que queria ter tido na adolescência. Quis partilhar o ânimo criativo, ter cinco pessoas a contribuir para a criação de uma música. Os pontos de enlace com a própria obra do Pessoa serão a necessidade de multiplicidade da minha parte, de contradição, na medida em que não gosto de convergir, tento abrir novos campos dentro do âmbito musical. Do mesmo modo que Fernando Pessoa explorou todos os campos da literatura, fosse a poesia, os contos, narrativas policiais, ensaios… Como tudo isso é literatura, tudo o que eu faço é música.
Até aqui, fez o seu percurso solitariamente?
Não. Tive bandas de jazz, bandas de funk, quando era miúdo. A minha relação com o rock não foi de performance, mas sempre mantive essa ligação, e os meus discos de jazz mostram-no. Há temas dos Radiohead, dos Pink Floyd, há temas do John Mayer, canções rock e pop. Tudo isso está lá, no meu percurso no jazz. Sou um improvisador, um criador que, nessa medida, vai compondo instantaneamente, mas quando quero compor com calma e construir a canção, também o faço.
Que projetos tem a decorrer e como é que os vê no mapa? Ou seja, qual é a capital do seu país?
Não tenho. Gosto mesmo de tocar hoje com os Alexander Search e daqui a uma semana fazer um concerto do Amália ou outro trabalho a solo, depois tocar com o trio de jazz, fazer uma digressão com outra banda… Gosto dessa multiplicidade. Nesse aspecto sou pessoano.
Também acompanha o Salvador Sobral no projeto dele.
Sim, já fazia parte da banda e produzi o disco [Excuse Me] com ele. Foi aí que começámos a contracenar mais. Depois chamei-o para este projeto. Mal sabia que ele ia passar a ser uma estrela da pop.
Inicialmente, o Alexander Search foi pensado com o David Fonseca como vocalista.
Sim. Cheguei a falar com o David, que era a pessoa em Portugal que tinha já uma história atrás de si a cantar em inglês. Pareceu-me ser a escolha mais óbvia. O David até se mostrou bastante interessado, mas depois as agendas não permitiram essa confluência. Entretanto, também conheci o Salvador e apaixonei-me por ele… E avançámos.
E conheceram-se no Hot Club. Estava a tocar e ele subiu ao palco…
Foi numa jam session. É mesmo esse o espírito. A malta aparece, quem quiser tocar escolhe um tema, se toda a gente o souber, tocamo-lo, comunicamos ali. Acho que eu já estava a tocar um tema antes quando ele apareceu, juntou-se à festa… e foi isso.
Parece-lhe que o que se vive hoje na música portuguesa permite um paralelismo com o que se passou há um século com o grupo de Orpheu?
Acho que o Salvador veio agitar bastante o ambiente. O que lhe aconteceu, e por mérito próprio, causou um grande impacto. Não me lembro na história da música portuguesa de ter surgido alguém que tenha aglutinado tantas pessoas, com tanta aclamação no mundo por causa de uma performance, e as consequências disso têm sido agitadoras e vão continuar a ser. A Amália foi a última performer a provocar um nível de agitação tão grande no modo como se foi impondo. Mas é claro que demorou mais tempo. Desde logo porque a comunicação se fazia de forma muito mais lenta. O Salvador cantou para 200 milhões de pessoas (e estamos só a falar de telespectadores, portanto, sem contar com as visualizações no YouTube nem todas essas outras plataformas), bateu todos os recordes da Eurovisão – no que toca à pontuação de uma canção… Estamos a falar portanto de uma força aglutinadora totalmente inusitada na história da nossa música.
Em que sentido é que isto também foi algo que lhe aconteceu? Conheceu este rapaz num clube de jazz, imediatamente se apercebeu de que havia ali alguém especial, mas se para o resto do país foi uma tremenda surpresa, como foi para si?
É uma história que me deixa feliz. Mais do que tirar grandes conclusões é algo que me deixa muito feliz. Sempre tive a certeza absoluta de que aquela pessoa ia ter uma carreira musical. Ia demorar, ser uma coisa feita passo a passo, disco após disco, chamando pessoas a si. Pessoas que iriam ficar tocadas, querer voltar a vê-lo, voltar a ouvi-lo, e que essas pessoas iriam trazer mais duas pessoas, e essas outras duas e assim iria ser exponenciada uma carreira. Disso não tinha dúvidas. É um músico muito forte, com ideias próprias, com originalidade… A carreira dele estava garantida. Agora, esta explosão ultrapassou todas as expectativas e todos os sonhos que pudéssemos ter. Inclusive os que eu tive. Mas só tenho a agradecer, e acho que se trata de uma felicidade. Pode agitar, trazer muitos benefícios para a música portuguesa, e para a cultura portuguesa. Aliás, já trouxe.
Há um aspecto curioso na forma como estão a conceber o imaginário deste vosso projecto, que passa pelos heterónimos com que se apresentam.
Sim, tem que ver com manter a fantasia daquilo que o próprio Fernando Pessoa nos ofereceu. Essa fantasia da multiplicidade, de cada um de nós ser vários. Tendo lido aqueles poemas e sido inspirado por eles, trouxe essa ideia para cima da mesa e para o projecto, que é além de concebermos musicalmente a identidade da banda, também cada um de nós desenvolver um heterónimo. Trouxe um livro com os heterónimos e cada um escolheu o seu de acordo com o que mais lhe dizia. Depois pensámos em vestimentas diferentes também… É uma ideia que ainda nos move, ainda estamos a tentar construir uma biografia própria para cada um.
Em que medida é que, não só Pessoa, mas os exemplos de artistas de outras áreas, inspiram um músico experimental, que dá tanta margem à invenção pelo improviso?
A minha necessidade de outras referências além da música é imensa. É de tal modo necessário que se tivesse apenas a música provavelmente eu não fazia música. Preciso da literatura como da amizade, de ir jantar com amigos, de viver experiência diferentes com cada um deles, de ir ao cinema, de ter uma vida bastante conturbada e múltipla para fazer música.
Acha que em Portugal o público tem alguma dificuldade em conceber o que é a liberdade criada por um artista?
Não acho que seja um problema português. Nem acho que haja grandes problemas. O Salvador tem construído de um modo natural uma mitologia. Na verdade, esta mitologia à sua volta tem sido construída pelas pessoas, pelo público, que adora uma pessoa que sai fora da caixa. Há um respeito grande do público português para com isso. Há um grande respeito, mesmo que se ofendam com algumas coisas, que adorem outras. Por isso, até sou um fã do modo como o público português tem vivido isto.
Ou seja, parece-lhe que desta forma algo histriónica, o que se conseguiu foi estabelecer um diálogo com o público português?
Ele conseguiu, sim, está a conseguir.
Tem falado sobre este fenómeno com ele? Que tipo de conselhos ou que sentimento lhe tenta transmitir?
Calma. E sobretudo esforço-me para que possamos manter os olhos fixos no lado artístico – de resto, algo que também ele tem presente – e no conceito de cada obra. Não estou interessado em mais nada. Acho que a paixão é uma coisa fulminante e que pode também acabar de repente. Nós temos é que estar preocupados em construir coisas belas e intemporais.
Depois de décadas de estudos pessoanos, talvez sejam os primeiros artistas em que se percebe que a obra não está submetida à do Pessoa, sendo pioneiros no sentido de dar uma expressão que é um seguimento, em que os poemas se tornam letras e inspiram músicas e, expressivamente, assumem uma nova vida.
Quero que as pessoas cantem as canções, as levem com elas no ouvido, e depois descubram o que é o Fernando Pessoa. Sempre foi o meu desejo. Tentei respeitá-lo o mais possível, elevá-lo o mais possível, mas Fernando Pessoa está aqui ao serviço da música. Isto é um projecto musical. Não me interessa nada confinar isto a um público literato. Como a música, que chega a toda a gente, Fernando Pessoa pertence a toda a gente que tenha capacidade de o integrar em si.
Um dos aspectos mais curiosos na concepção do Orpheu foi a amizade entre o Fernando Pessoa e o Mário de Sá Carneiro. Neste momento sente que este é um projecto que vos liga e vos torna amigos, ou que é a vossa amizade que tem sido o fator que diz para onde é que este projeto vai?
A amizade é totalmente inspiradora. O grupo é muito mais forte porque somos amigos e porque queremos bem a cada um, independentemente do sucesso. Se a amizade entre o Pessoa e o Sá Carneiro criou não só uma partilha mas instigou muitos poemas e textos, a amizade entre eu e o Salvador, o Daniel, o Joel e o André criou estas músicas e vai criar outras.
Vê algum aspeto que, no campo da música, lhe pareça característico desta geração? [Entretanto, Salvador junta-se à conversa]
JR: Não consigo apreciar já com alguma distância, é preciso passar algum tempo para se fazer essa leitura e entender qual será o fio condutor nesta nova força que ganhou a música portuguesa. Diria que os músicos se sentem satisfeitos por ver que o público reage ao seu trabalho e que não os desconsidera. Acho que essa consideração tem sido muito positiva e motivadora para se trabalhar mais e fazer mais coisas e diferentes. O reconhecimento já abrange esta nova geração e isso é bom.
Salvador, como é que está, como se tem sentido?
SS: Tudo bem. Ultimamente as coisas estão mais calmas no que toca à atenção das pessoas. Penso que abrandou um bocado, o que é bom. Estamos a tocar por todo o lado. Correu bem o lançamento do disco dos Alexander Search. Fomos logo para os tops. Agora descemos um bocadinho, não foi?
Acho que já estão de volta à terceira posição.
JR: Está um tipo no primeiro lugar que não sai de lá.
SS: Exato. [risos]
Uma coisa de que já falámos aqui é que o Júlio vê com otimismo aquilo que se passou consigo desde a Eurovisão. Que o seu caso não é um acidente, mas um momento importante, um diálogo que se iniciou. Ou seja, de uma maneira ou de outra, o público português também precisava de ter um interlocutor que o agitasse. O Júlio referiu, sem os comparar, o caso da Amália.
JR: A expressão diálogo é bonita. Porque o que tu estás a conseguir é dialogar com as pessoas. Elas não estão numa redoma, tu dialogas com elas. Isso é uma coisa muito rara.
Sente que o público português ainda tem dificuldade em perceber que do artista não deve esperar apenas que se conforme em ser aquela figura que se põe diante dele e faz dois ou três truques de circo, mas que tenha vontade de sacudir as pessoas, de introduzir algo de novo, de perturbador?
SS: Há aquela conceção que as pessoas têm do músico enquanto figura pública, de que este tem a obrigação de agradar às pessoas porque elas ouvem a música dele, e nós temos de ser corretos e temos de nos comportar segundo o que as pessoas já estão à espera. Simplesmente eu não sou essa pessoa, sou alguém que pensa, e não posso deixar de reagir às coisas que me indignam. E muitas coisas nesta vida de figura pública me indignam. E sim, é verdade que gosto de provocar, de perceber até onde é que posso levar essa provocação, mostrando a minha opinião, aquilo que sinto de verdade. E recusar-me a tirar fotografias só porque toda a gente se sente obrigado a fazê-lo, não ir aqui ou ali, falar deste ou daquele artista porque toda a gente o faz… Porque somos todos amigos e… não quero, não quero ser mais uma pessoa que vai atrás do rebanho. Prefiro agitar um pouco o rebanho e tentar pensar por mim mesmo. Não ser mais o artista que se contenta em fazer tudo igual. Até porque a minha música, e a música que fazemos, não é assim. É uma música que está constantemente à procura e em diálogo. Esse diálogo de que falava. Na vida sou como sou em palco.
Como é estar neste diálogo, sozinho, enfrentando uma hidra de milhões de cabeças com todas as suas sentenças? Dorme bem à noite?
SS: Não é sequer humano aquilo por que passei. Até ali tinha o meu disco, tinha um público de 50, 100 ou 200 pessoas num auditório, passei de ser praticamente desconhecido a ter um aeroporto com multidões à minha espera. Ninguém podia estar preparado. Nem que tivesse feito psicoterapia específica para lidar com este tipo de fama. Não era possível. Fui tentando dar conta da situação. Lidei mal que se farta, outras vezes bem que se farta, e ainda estou nesse processo. Como é que consigo dormir? Muitas vezes tentando não pensar em tudo isso, e tentando fingir uma normalidade que não existe. Tento ser o mais normal possível dentro desta anormalidade que se gerou à minha volta.
Sente que já conquistou uma certa imunidade. O seu próprio corpo já cria uma distância? E consegue lidar com o facto do seu nome já não ser seu, mas andar na boca de toda a gente?
SS: Sim, acho que sim. Ganhamos uma espécie de escudo… Mesmo depois de ter ganho a Eurovisão, há um escudo que agarrei e parece que não me toca tudo directamente. Se não for uma pessoa próxima de mim a chamar-me a atenção, pessoas que gostam verdadeiramente de mim, passa-me um pouco ao lado. Também há a proteção de não estar nas redes sociais, isso ajuda-me bastante. Acho que se lá estivesse podia ser pior, como acontece com aquelas pessoas que ficam obcecadas com o que se diz sobre elas. Mas não vou mentir, há coisas que me tocam. Ainda esta semana, as revistas a dizerem que fui vaiado quando não é verdade. Esse jornalismo horrível também me indigna. E vou denunciar isso sempre que puder, esse jornalismo terrível que existe neste país: ‘Agora vamos dizer que as pessoas vaiaram o Salvador’. Não é verdade. Aplaudiram. Algumas queriam a canção [‘Amar Pelos Dois’] e eu expliquei-lhes que não ia cantar a canção e porquê. Coisa que não era preciso porque no cartaz estava o nome do grupo, toda a gente sabia o que estava ali para ver. Mas pronto, fui mais além disso, expliquei o que iam ouvir, mas as revistas depois querem à força vender… Chateia-me isto. Tento pôr esse escudo, mas às vezes não é tão forte que bloqueie tudo.
À cabeça dos mitos históricos do nosso país está o sebastianismo. O próprio Fernando Pessoa se debruçou sobre ele, sobre o Quinto Império… Sente que de algum modo corresponde a esta necessidade de um salvador, já que surgiu num momento em que Portugal estava em crescente afirmação no plano internacional?
SS: No outro dia disseram-me que era normal eu sentir-me assim porque eu não conseguia abarcar a felicidade toda de um país, as pessoas depositaram a felicidade em mim e eu não sou capaz de dar-lhe vazão. As pessoas procuram figuras para adorar e depois para odiar logo no dia a seguir. Isso não é normal para ninguém, ninguém consegue lidar com isso. Veja a Amy Winehouse e tantos que não se deram bem com esse tipo de atenção. Isto para dizer que estou a dois passos de ter uma overdose. [risos]
Os dois sabem o que é ter vivido com o sonho de se tornarem músicos, um sonho bastante ousado neste país, onde há grandes músicos que não passam disso mesmo. Em que medida é que o sonho também vos falhou ou levou a uma vida de funcionário cansado?
JR: Quando aparecer um funcionário cansado vou-me embora. Acho que não vai aparecer. Vou lutar com todas as minhas forças para que não apareça. Obviamente, gosto mais de tocar piano do que de dar uma entrevista, mas hoje isto até está a sair bem. A pergunta é um gesto imprescindível para qualquer artista. E ela pode vir numa entrevista como esta que estamos a fazer e nós entusiasmarmo-nos com isso. Quanto ao cansaço, há um lado físico, às vezes a repetição cansa, mas não será uma coisa que se venha a manter…
SS: A repetição é um perigo. A rotina na música é uma coisa de que estamos constantemente a fugir. Nos concertos, então, a última coisa que queremos é repetir-nos. Ao ponto de nos forçarmos a impor uma diferença, e isso quando tocamos é evidente precisamente porque fazemos tudo menos repetirmo-nos. E o jazz não quer isso nunca.
Como é que se vêem no futuro? Imagino que na vida de uma pessoa que tem um sucesso tão grande que ameaça tornar-se catastrófico tenham um plano de fuga ou uma estratégia para canalizar esta energia e não deixar que esta vos domine.
SS: É um bocado essa procura de normalidade, ter um plano em relação àquilo que vamos fazer, indiferente em relação ao que se passa à volta. Nós vamos fazer um segundo disco, eu também vou fazer um segundo disco num outro projecto…
O Júlio também o integra?
SS: Claro, claro.
O Júlio é o quê para si, neste momento da sua vida?
SS: É a minha alma gémea musical. Não tenho dúvidas nenhumas.
Alexander Search, sendo um dos heterónimos mais íntimos de Pessoa, é também um dos mais angustiados, revoltados face à ideia de família, género, sociedade, Deus… Hoje para se fazer algo de novo na cultura ou na música portuguesa é mais importante criar ou destruir?
SS: A destruição é parte crucial de um processo de criação. Destruição de preconceitos, destruição de coisas que persistem há muito tempo, de fórmulas. É preciso destruir as fórmulas e voltar a fazer as coisas de outra maneira. Esta música é muito isso: destrói certos preconceitos sobre o rock, destrói as harmonias típicas do jazz, é uma destruição criativa.
Ao passar por este fenómeno de mediatismo imediato e avassalador, de que forma é que isso afectou a sua relação com os outros?
Mudou um pouco no sentido em que, antes eu gostava de falar com toda a gente, estava sempre a tentar dar-me com as pessoas, com todo o tipo de desconhecidos… Gostava muito de pessoas. Hoje em dia passo mais tempo a fugir das pessoas do que a falar com elas. Estou mais remetido para o círculo daqueles que me são mais queridos.
Mas ganhou algum tipo de medo às pessoas?
Medo, não. Mas às vezes as pessoas são muito invasivas, e isso é o que mais detesto. Não é medo, é uma preguiça de me envolver em tudo aquilo. Desde as fotografias que me tiram no hospital, a filmarem-me de longe quando estou a comer, ou gritarem por mim quando estou em casa. Ouvir gritos das pessoas que sabem onde eu vivo a pedirem para eu ir à janela. Tenho feito o máximo para segurar a minha normalidade, e a minha vida. Muitas pessoas já sabem que eu não gosto de tirar fotografias, que não percebo essa obsessão, e essas não me pedem fotografias. Outras ainda insistem, e eu explico que gosto é de cantar, não é de tirar fotografias. Pouco a pouco, as pessoas vão respeitando e percebendo.