A caça ainda não terminou. 130 anos depois, o imaginário colectivo continua a inspeccionar-se em busca de um pormenor que antes lhe tenha escapado. Olha-se uma vez mais à lupa um rastro que parece não ter esfriado. O imenso arquivo de arrepiantes detalhes é reexaminado na procura de um fio solto que ajude a separar o diabo do homem. Volvidos tantos anos, há uma ânsia de saber o nome verdadeiro, enfrentar um rosto, mesmo que numa fotografia, sentir o tumulto que reste nos olhos de um monstro que, tudo indica, morreu impune.
Como imaginou o poeta surrealista Robert Desnos, num conjunto de artigos de jornal escritos algumas décadas depois dos crimes (entre nós reunidos e publicados em 2001, pela & etc), o Estripador deve repousar até aos nossos dias “num desses calmos cemitérios ingleses em que a sombra rectilínea dos ciprestes se demora na relva aparada com cuidado e nas áleas monótonas. Cada dia que passa é mais um dia que cai sobre essa campa misteriosa. As jovens inglesas que atravessam o cemitério, a caminho do templo protestante ou da igreja, conservam diante dessa campa e das demais um silêncio recolhido. E nada assinala aos homens que ali, na paz telúrica, repousa aquele a quem se pode aplicar o título de ‘génio do crime’.”
A cada geração, uma mistura de ócio, curiosidade intelectual e um certo maravilhamento, que anda tantas vezes associado “a proezas funestas”, faz germinar um novo lote de detectives com uma determinação invulgar, alguns investindo muito mais do que o seu tempo, consideráveis fortunas, na tentativa de encontrar um desfecho para esta saga policial que continua a pingar sangue das ruas do East End londrino, no final do século XIX, para os nossos dias.
Para já, e apesar das inúmeras teses, Jack continua a monte. Uma figura tão selvagem quanto inspirada na hora de assinar os seus crimes. Foram 10 semanas, cinco prostitutas mortas com uma brutalidade quase amorosa. Foi um mergulho no horror que, da mesma forma como começou, acabou. Sem explicação. Tal como um pesadelo de que se acorda para perceber as marcas que deixou.
E hoje há outra porta, um acesso inesperado ao bairro de Whitechapel, onde os crimes que enfeitiçaram o mundo em 1888 foram cometidos. A porta foi revelada em 1992, quando as tábuas do soalho de uma casa senhorial que pertenceu a um rico negociante de algodões de Liverpool foram levantadas. James Maybrick deixou um diário de nove mil palavras e com uma certa propensão literária, no qual confessa o homicídio das cinco mulheres em Londres e acrescenta mais uma vítima à lista: uma prostituta assassinada em Manchester.
O diário de Maybrick terminava o relato desta forma: “E deixo o meu nome que todos conhecem para que a história conte o que o amor pode fazer a um homem bem nascido. Cordialmente, Jack, o Estripador.”
Uns poucos meses depois de chegar aos escaparates, já a liga dos entendidos no universo do Estripador o tinham submetido a uma meticulosa análise, e a autenticidade do documento foi posta em causa. Para os investigadores, ainda que o diário pertença realmente a Maybrick, o mais provável é que este tenha resultado de um dos muitos espíritos seduzidos pelo terror sensacionalista com que a imprensa da época alimentou a lenda do mais célebre de todos os serial killers, e que talvez tenha querido convencer o mundo (talvez tendo-se convencido antes a si mesmo) de que era o assassino, criando uma elaborada falsificação a partir de elementos recolhidos pacientemente na histeria que Jack provocou.
A verdade é que, passado todo este tempo, se o mistério se tornou tão instigante talvez isso se deva à sua sedução labiríntica, como nos conduz às trevas e se mantém invencível. Mas, segundo noticiou o jornal britânico “The Telegraph”, um quarto de século depois, há um conjunto de investigadores que não tiveram tanta pressa em desdenhar o diário, e que garantem ter neste momento condições de provar que se trata de um documento genuíno.
A 4 de setembro, o diário – “25 Years of the Diary of Jack the Ripper: The True Story”, de Robert Smith – será reeditado, desta vez com um estudo que promete relançar o debate à volta do documento. Quem mais tem feito para credibilizar esta tese é Bruce Robinson, mais conhecido como guionista e realizador. Trata-se do tipo de figura cujo percurso adverte contra levar as suas opiniões como mais um delírio na infinita sucessão que envolve Jack, o Estripador.
Robinson viu gerar-se em torno do seu primeiro filme, “Withnail e Eu” (1987), um culto e uma mitologia bastante invulgares. Antes, tinha já assinado o guião de “Terra Sangrenta” (1984), de Roland Joffé, e, mais recentemente, foi responsável pela adaptação ao cinema de “O Diário a Rum” – romance autobiográfico de Hunter S. Thompson, com Johnny Depp como protagonista. Tendo dedicado os últimos 15 anos à lenda de Jack, o Estripador, nas suas investigações gastou mais de meio milhão de euros contratando investigadores para o ajudarem na pesquisa que resultou num livro de mais de 850 páginas. “They All Love Jack: Busting the Ripper”, alarga os contornos da história para além do vulto do serial killer que matou as cinco prostitutas nas ruas de Whitechapel, e analisando o contexto da Inglaterra vitoriana, une os pontos de uma trama bem mais complexa, revelando o que permitiu que o assassino escapasse. Robinson aponta assim para uma conspiração que tinha na sua base as ligações e os rituais secretos da maçonaria.
No livro, Robinson defende que a tão propalada incompetência da polícia londrina não passou de uma operação de encobrimento. Charles Warren, o comissário da polícia encarregado da investigação, estaria apenas a proteger alguém que foi longe demais. Um maçon como ele, que resolveu usar o manto de secretismo e forçar a irmandade a um acto de cumplicidade monstruoso. Talvez Jack não tivesse ficado pelas cinco vítimas. Talvez a sede de sangue não pudesse ser saciada, e é possível que a maçonaria tenha sido forçada a tratar do assunto.
Apesar de Robinson ser um dos especialistas que fazem fé na autenticidade do diário, acredita que o manuscrito tem dois narradores, e que o assassino não é James mas o seu irmão, Michael. Também maçon, trata-se de um compositor que alcançou bastante sucesso, e que, um ano antes dos homicídios, viu a canção “They all love Jack” transformar-se em mais um dos seus êxitos.
Alegações quanto ao envolvimento daquela sociedade secular nos crimes de Whitechapel não são novidade, afinal, este é um mistério para o qual a imaginação já forjou todos os cenários e explicações. Numa entrevista ao “The Guardian”, Robinson levanta o véu do contexto em que surgiu Jack, o Estripador, e deixa claro que os seus crimes bestiais não têm apenas a assinatura de um homem, antes configuram uma aberração que se torna visível a partir das monstruosidades tecidas secretamente pelos homens influentes de cada período. O Estripador torna-se, assim, a besta que foge aos planos discretos do diabo, revelando ao público como “o Estado britânico estava podre até ao osso”. E se Jack se safou, Robinson garante que isso se explica porque “nada podia ameaçar a maçonaria, uma vez que a elite vitoriana não podia funcionar sem ela”.
Confuso? Talvez esse seja o grande triunfo desta personagem, deste talento que soube exigir explicações, causando o pânico dentro de uma realidade que era já um pesadelo. Whitechapel, segundo é descrito por alguns escritores da época, era então o cenário perfeito para aquela obra de horror que acordaria do seu estupor toda a Inglaterra. Um bairro com uma atmosfera trágica, “onde os mais miseráveis enfermos de Londres, esses que aos domingos desenham a giz nos passeios o retrato do príncipe de Gales e que à noite disputam às ratazanas gigantes um abrigo para dormirem nas docas do Tamisa, todos eles passavam ombro a ombro com as prostitutas mais lamentáveis que uma grande cidade do mundo sabe oferecer à sensualidade triste dos sábados protestantes”.
James Maybrick e o irmão são apenas mais dois nomes numa lista que se tornou demasiado extensa para não pensar em Jack como um terrível justiceiro. Ao longo das décadas, 500 pessoas reclamaram a autoria dos crimes ou foram consideradas suspeitas. Jack é maior do que muitos heróis. E, de certo modo, mostra como nas sociedades em que a organização do mal é tão perfeita, às vezes uma série escabrosa de crimes parece ser o único bem que resta.