Nasci em Belém, num casarão de dez divisões, com jardim à frente e quintal nas traseiras. Nessa altura os bebés em Lisboa nasciam quase todos na Maternidade Alfredo da Costa, mas a minha mãe entrou muito rapidamente em trabalho de parto e o meu avô materno, Virgílio Paula, que era médico, decidiu que eu nascesse em casa.
Assim, ao contrário da esmagadora maioria dos bebés nascidos na capital, que eram naturais de S. Sebastião da Pedreira, sou natural da freguesia de Santa Maria de Belém.
A rapidez do parto correspondia à minha natureza irrequieta: em miúdo tinha uma energia inesgotável. A minha mãe chamava-me o ‘palito eléctrico’: palito por ser magrinho, eléctrico por nunca estar parado. Só me tornei mais recatado no fim da adolescência.
No quintal de casa onde vivíamos havia muitos gatos. Hoje os gatos são quase todos domésticos – ‘animais de estimação’, como agora se diz – mas na época eram vadios. Andavam pelos quintais e comiam o que apanhavam, ou os restos de comida que almas caridosas lhes punham à disposição em pratos velhos. Também caçavam ratos, mas nunca os vi comê-los: batiam-lhes com as patas, atiravam-nos ao ar, faziam-lhes trinta por uma linha até os verem cair mortos, mas depois abandonavam-nos.
Desses gatos vadios adoptei um dia um, todo preto, a que dei o nome de Matateu – um famoso jogador moçambicano do Belenenses, o meu clube do coração, de que o meu citado avô foi fundador.
Comprei-lhe uma coleira vermelha com um guizo, que lhe ficava a matar. Eu teria na altura uns oito anos e o gato esteve lá em casa cerca de dois, mais coisa menos coisa. Nessa idade não temos a mesma noção do tempo que em adultos.
Umbelo dia saí de casa para fazer um recado (as crianças nessa época faziam ‘recados’, em geral a pedido das mães), e tive a má ideia de levar o gato ao colo. Mas a uns 20 ou 30 metros de casa ele começou a agitar-se, fincou-me as unhas na carne, arranhou-me o peito e os braços – até que decidi largá-lo. Achei ingenuamente que voltaria para casa. Mas quando regressei, talvez meia hora depois, não havia nem sombra do animal. Evaporara-se. Ainda o procurei pelas redondezas, gritei «Matateu! Matateu!», mas nada. Nunca mais o vi – nem sequer misturado com os gatos vadios que apareciam lá pelo quintal.
Não voltei a ter gatos. Mas curiosamente, o meu pai – que nunca se interessara minimamente por animais domésticos –, quando voltou para Portugal, depois de um longo exílio, adoptou uma gata; e um belo dia ela pariu uma ninhada atrás do sofá.
Os gatos passaram a andar lá por casa como se fosse na rua – e cheguei a ver o meu pai a escrever à máquina com um gato encavalitado no ombro. Ele justificava esse súbito interesse pelos gatos com o facto de terem «um feitio rebelde», ao contrário dos cães que, na sua opinião, eram demasiado submissos e fieis aos donos.
Hoje, nas cidades, quase não se veem gatos – embora talvez os haja nos bairros populares ou nas casas com quintal. Mas no Algarve os gatos ainda abundam.
Em Pedras d’el Rei, onde tenho casa desde 1977, como já contei, há imensos gatos vadios de todas as cores: brancos, pretos, amarelos, tigrados, etc. Em Junho, quando fizemos uma semana de férias fora de época, apareceram vários à nossa porta, certamente em busca de restos de comida. Mas como não fazíamos refeições em casa, não tínhamos nada para lhes oferecer. Desiludidos, os gatos foram desandando, com excepção de um. Distinguia-se bem dos outros, pois tinha o dorso preto como azeviche mas o peito muito branco.
O gatito foi ficando lá pelo jardim, como se fôssemos os seus donos. Miava, miava, implorando comida – e um dia, condoído, dei-lhe uma das poucas coisas para comer que havia em casa: um pedaço de pão. Para meu espanto, o gato comeu-o! Mas quando lhe atirei um segundo bocado, já nem se mexeu. Então lembrei-me de lhe dar um pedacito de fiambre. Comeu. E a seguir um pedacito de queijo. Também comeu. Mas não insisti, com receio de que lhe fizesse mal. O organismo do animal não devia estar habituado a digerir queijo e fiambre…
Como o gato não arredasse pé do jardim, mostrando-se inteiramente dependente das nossas ofertas, enchi-me de brio e fui comprar-lhe um saco de comida para gato. E passou a almoçar e jantar. Quando abríamos de manhã a porta de casa, lá estava ele pronto a comer o pequeno-almoço. E quando chegávamos à noite, já sabíamos que estaria à nossa espera para lhe darmos o jantar. Passou a fazer parte da família.
Um dia, porém, não apareceu à noite. E no dia seguinte não estava lá de manhã nem quando chegámos depois do jantar. Percebemos de repente que o gato, que começáramos por tolerar, nos fazia falta. Já não era ele a implorar que lhe déssemos um pouco de atenção ou de comida – éramos nós a desejar que ele aparecesse.
Procurámo-lo pelo aldeamento todo, mas nunca mais lhe pusemos a vista em cima. Vimos outros gatos, mas nem sombras do ‘nosso’. Não sabemos o que lhe aconteceu: se foi apanhado por alguma camioneta da Câmara, daquelas que andam a arrebanhar animais vadios, se foi pregar para outra freguesia.
Fazemos votos para que nos tenha trocado por uma família que faça refeições em casa e lhe dê restos de comida cozinhada mais saborosa do que aquela seca ração para gato que lhe comprei e não devia ter graça nenhuma.
Desejamos ardentemente que nos tenha atraiçoado – porque, verdadeiramente trágico, seria ter-se deixado apanhar pelos funcionários municipais e enviado para o gatil, à espera de ser abatido.