Ofender os deuses a troco de umas quantas gargalhadas e pagar o preço mais alto, como Sísifo, condenado a empurrar a pedra até ao cimo da montanha só para vê-la rolar de volta para a base assim que atinge o pico. Aí está a inescapável e, finalmente, fatal ironia que governa os destinos de um grupo bastante heteróclito de personagens que dão por si numa acidental universidade de comédia a aperfeiçoar de forma maníaca o set de 15 minutos que pode ou não levá-los à fama, antes que voltem a despenhar-se sem apelo nem agravo.
Em Portugal, já vimos como qualquer imbecil persistente arranja um programa na rádio, no cabo, quando não nos confrangedores programas da tarde, numa liga de bimbos, que funciona como o nosso sub-jet set, que consegue ser ainda mais alarve do que aquele. Ora, num país onde a comédia serve como a mais flexível das filas desviadas dos centros de emprego, abarcando todas as manifestações e projectos, aparições e servicinhos de uma cambada de assumidos palermas, que tão frequentemente se entregam ao mais boçal piadismo, quanto se envolvem em polémicas com as virgens fundamentalistas, ofendidas por tudo e por nada, é natural que uma série como “I’m dying up here” não encontre um público.
Tratando-se de uma série dramática que se desenrola na cena da comédia em Los Angeles na década de 1970, nem mesmo a sobrecarga da estética retro, afasta a sensação de que vem do futuro esta visão de um grupo de comediantes a dar no duro, sem ganhar um tostão furado, tendo de provar que são capazes de levar às lágrimas a audiência de um mítico club onde se lançaram as carreiras de alguns meteoros, tudo gente pouquíssimo recomendável, e que, se fazia rir, não era por tornar o ambiente mais leve, mas por fazê-lo a partir do ponto mais escavado, da cratera de uma civilização e cultura que tem como cola a hipocrisia.
Esta nova aposta da Showtime parece contrariar tudo o que aparece como tendência, e aquilo que é a prescrição ideal para enredos escapistas, nessa delirante fórmula de sucesso que engorda a fantasia de todo o legado de clichés medievais para produzir telenovelas como “A Guerra dos Tronos”.
Com algumas afinidades com “Mad Men”, esta série é baseada, embora de forma bastante folgada, no livro “ I’m Dying Up Here: Heartbreak & High Times in Stand-Up Comedy’s Golden Era”, de William Knoedelseder, mas se este segue no seu relato a experiência na escalada até ao topo de comediantes como Andy Kaufman, Richard Pryor, Robin Williams ou Jim Carrey – que abrilhanta os créditos como produtor executivo da série –, esta reconstrói o clima de então, e mesmo se aqui e ali se faz valer da referência ou aparição de alguns astros, vale-se sobretudo da ficção, compondo uma série de personagens compósitas e criando uma orquestração quase sinfónica de dramas que se desenrolam em tensa sucessão.
A série é um prodígio, primeiramente pela forma como reúne num molhe este conjunto de aspirantes em busca de uma tirada que escalde os juízos, com os actores a revelarem um timing mortífero, defendendo cada um deles a sua causa, fazendo de nós, e por motivos tão diferentes, a sua torcida. De resto, e como agentes vindos de um passado/futuro em que o politicamente correcto ainda não tinha as mãos na garganta de quem quer que tomasse o microfone, nas inspiradas, divertidas e cruéis interacções entre si, bem como nos momentos em que testam o material com o público, mostram como a comédia é o exercício crítico por excelência, na forma como reduz as convenções e os figurões a uma bonecada, e como, nas questões mais sensíveis, só o riso fura as grandes barreiras e restaura alguma sanidade. Por outro lado, fazer rir é o talento que nasce de se ser impiedoso, obrigando o cómico a caminhar sobre uma linha muito estreita, entre graça e risco, a segurar o inesperado, do mesmo modo que o funâmbulo dançando no fio.
Desenvolvida por David Flebotle – que tinha já no currículo um sucesso com outro drama baseado em factos verídicos, “Masters of Sex” –, o que faz desta série sobre comédia um drama complexo é a sua capacidade de tornar muito explícito como ter piada ou não é um acidente que é preciso dominar. No final de contas, são aqueles que frequentaram os vários círculos do inferno que, depois, vêm à tona e são capazes daquela tirada que faz gelar até o fogo eterno e serve de alívio aos martirizados.
Temos um elenco sem uma só estrela de primeira linha, e que, no entanto, prova ser um imparável desfile de génios espirituosos. O maior defeito da série, no que toca a um compromisso com o realismo, é o facto de não haver margem para a vulgaridade. À medida que os temas e conflitos reflectem a conturbação social própria daquele período, o fio condutor é sempre um humor chistoso mas penetrante. Ninguém vai viver feliz para sempre depois de umas atribulações. Há uma alternância de estados de humor, e uma capacidade de extrair sumo de todas essas variações.
O ritmo é o verdadeiro protagonista, os diálogos cortam cerce e Aaron Sorkin com todo aquele frenesi acelerado que pratica e que muitas vezes só serve para esconder o vazio das coisas que os seus personagens dizem uns aos outros, sempre cheios daquele ar presunçoso, faria bem em estudar o trabalho desta equipa de guionistas.
A segurar o leme, temos a personagem interpretada por Melissa Leo, que introduz uma variante tão ousada quanto empolgante na emancipação feminista, que daquela década para cá azedou um tanto, deixando a bela, recatada e do lar pela frenética, auto-indulgente e consumista, trocando a cozinha pelas avenidas do centro comercial. Goldie, a dona do clube de comédia, é um evidente tributo à mítica dona do Comedy Store, Mitzi Shore, e é ela o dínamo desta série. Uma mulher que carrega o seu destino e ainda vela pelo dos restantes, mostrando não apenas carácter mas um heroísmo na forma como desenreda os fios, lê o que está para diante, e sem perder de vista os seus interesses, combina-os sem deixar nenhum homem (ou mulher) para trás.