Sedrick de Carvalho: ‘O meu cadáver seria o presente de Natal de José Eduardo dos Santos’

Foi um dos detidos no processo dos 15+2, esteve durante três meses fechado numa cela sem luz, mas diz que saiu mais forte e que a oposição deveria ter boicotado a eleição de 23 de agosto.

Estudante de Direito – estava no quinto ano na Universidade Piaget quando foi preso –, jornalista de carreira interrompida, Sedrick de Carvalho é um dos presos políticos angolanos do processo que ficou conhecido como dos 15+2. Nesta entrevista conta tudo aquilo que passou na prisão e fala da decisão de fazer uma greve de fome sem beber, nem comer, pensando no suicídio como protesto radical contra as condições da sua detenção. Esclarece as razões para ter deixado Angola e ataca os partidos da oposição por não terem boicotado as eleições que, garante, estão feitas para o partido no poder, o MPLA, ganhar.

Por que está em Portugal?
Neste momento estou a tentar uma bolsa de estudo para dar sequência aos estudos em Direito que foram interrompidos aquando da cadeia. Quando saí houve muitos desentendimentos de vária ordem para retornar e, por isso, estou cá a tentar uma bolsa.

Para qual universidade?

Vou tentar uma pública, mas ainda não há nada palpável.

E optou por Lisboa porquê?

Era necessário, porque em Angola havia poucas possibilidades de dar continuidade. Fiz alguns contactos, há muitas probabilidades de conseguir aqui, visto que estava a concluir o curso. Há muitas semelhanças entre o sistema jurídico angolano e português e há, também, a facilidade da língua.

Por que não quis ficar em Angola e continuar, por assim dizer, a luta?

A luta continua, mas só a vitória é que não é certa, não é? Depois de sair da cadeia nenhum de nós estava estável economicamente e as possibilidades foram piorando. Aparentemente está tudo bem depois da nossa libertação, mas não, passamos por várias dificuldades. Inclusive há pessoas ainda a responderem a processos.

Não podia continuar a estudar porque não tinha dinheiro para pagar as propinas?

Este é um facto, mas há outros, que não quero frisar, porque são muito privados.

Continuaram a ser perseguidos ou não? Depois de terem sido libertados, foram vigiados?

Isso era inevitável. Só se não estivéssemos a falar de um governo ditatorial é que isso não aconteceria. As perseguições continuam e os empecilhos para não dar sequência à vida normal continuam a ser colocados.

O que retira da experiência da prisão e de todo o processo?

Muita coisa se retira. O estar na prisão em si acaba por ser um ponto de aprendizagem permanente. De tantas outras coisas que podia frisar há um ponto que é a coerência e integridade. A convicção que eu tinha quando fomos para a cadeia era a de que podíamos ser mortos a qualquer instante. Mas fomos para a cadeia e foi completamente diferente. Uma coisa é a mentalização de que, eventualmente, isso pode acontecer, outra é realmente vivenciar. É completamente diferente. Fomos postos à prova sobre a nossa coerência e integridade. Ter entrado e saído dali, não iguais, mas com o nosso espírito mais fortalecido, é claramente a maior experiência. Saber que em situações tão difíceis é possível manter-se íntegro e coerente. Claramente, hoje sinto-me forte por isto. Percebo que, afinal de contas, foi possível e é possível, perante aquelas adversidades todas, manter-se firme. Porque não é fácil, num país como Angola, onde carecemos imenso de exemplos, não se vergar face àquele regime ditatorial. Quando jovens como nós, miúdos, entramos naquelas masmorras e saímos de lá ainda mais fortes é realmente um exemplo de que Angola precisava. Foi muito bom ter feito isto porque ao contrário seria uma grande perda, seria um sinal claro de que não é possível enfrentar aquele regime.

Todos tinham consciência de que o facto de estarem a estudar um livro vos poderia trazer dissabores? Acabou de dizer que até pensou que podiam ser mortos.

Em Angola, o simples facto de contestar, de criticar o regime, a um nível inclusive mais baixo, como contestar porque é que a bandeira do MPLA está afixada na minha parede, só este facto já é suficiente para ceifar vidas. Então, quando estávamos a fazer aqueles debates, aqueles estudos que tinham um objetivo específico, que não ficariam apenas por ali, estávamos conscientes. Eventualmente alguém não acharia que fosse para tanto, aliás eu também numa primeira fase achei que não fosse para tanto. Mas, pelo trabalho de jornalista que venho realizando desde 2009, pessoalmente tinha perfeita consciência de que a qualquer instante podia acontecer uma situação do género. Os que me rodeavam, a família, os amigos, inclusive colegas de trabalho do mesmo jornal, também me chamavam a atenção para que tivesse cuidado nas minhas abordagens porque podia acontecer o pior, que é a morte. Já aconteceu em alguns casos. Isto era evidente e todos nós que estávamos ali estávamos conscientes deste risco.

Prometeram-vos algumas coisas para abandonarem a luta, depois da cadeia?

A mim não. Fico às vezes a pensar nisso, ‘mas porque é que nunca vieram ter comigo?’. Já sofri aliciamentos em outras alturas. Mas consigo já vislumbrar as razões por que não. Um regime ditatorial como o angolano tem especialistas em psicologia, em psicanálise, muito bons e essas pessoas devem fazer um estudo de perfil de cada indivíduo e já perceberam que não sou de me vergar a essas propostas. Já conseguem perceber que o meu perfil não é para esses joguinhos. Mas, claro, sei de outros casos em que, sim, fizeram aliciamentos diretos e felizmente também essas pessoas não se venderam.

Com cargos, com dinheiro?

Com cargos, dinheiro, casas e tudo. Aliás, eles fazem sempre isto. A mim, de forma indireta também foi nessa linha de casas, de dinheiro. Sei de casos, principalmente de jornalistas, que receberam.

Pode falar-nos um pouco da sua experiência na prisão? A determinada altura chegou a escrever uma carta a dizer que se ia suicidar. O que o levou a isso, o desespero?

Desespero é a palavra certa. Toda a fase da cadeia foi de desespero. Ao estar privado da liberdade, cada dia que passa o desespero aumenta. A decisão de fazer aquela greve extrema foi tomada numa altura em que estávamos mais uma vez a organizar greves, simplesmente para exigir que terminasse a fase dos interrogatórios no tribunal e se passasse para a fase da acareação e, eventualmente, à fase dos declarantes. Estávamos em dezembro, época festiva, e eu analisei, se vamos fazer uma greve soft – não é soft porque chegou aos extremos a que chegou com o Luaty Beirão [36 dias de greve de fome] e o Nuno Álvaro Dala [34 dias] –, se consomes ainda líquidos, o organismo vai-se deteriorando aos poucos, não de forma tão acelerada, e sabíamos que o José Eduardo dos Santos, na greve do Luaty e na greve do Nuno, recebia relatórios diariamente do estado de saúde dos dois. Aí eu falei ‘não, eu não vou dar esse gostinho ao senhor José Eduardo dos Santos, de me ver definhar assim, eu vou acelerar a coisa’. E a carta que escrevi era mais ou menos nesses termos, que o meu cadáver seria o presente de Natal de José Eduardo dos Santos. Estávamos na semana de Natal, estava há seis meses sem ver a minha filha, que tinha um ano na altura, o que era muito doloroso. Antes da cadeia nunca tinha ficado um dia sequer sem vê-la, inclusive rejeitei vários trabalhos para deslocar-me para fora por causa dela. Pedi para que se abrisse uma exceção e pudesse ver a minha filha porque eu estava convicto de que com aquela greve extrema iria morrer. Felizmente, a carta foi divulgada no domingo, comecei a greve numa segunda e na terça-feira tive contacto com a minha filha. Estava disposto a regressar à cela e manter-me nu (uma das coisas que fazia nesta greve era não vestir-me), e esperar pela morte que surgiria, segundo o especialista em cinco dias, no máximo…

Porque não queria ingerir líquidos também?

Não ingeria líquidos. Aliás, nestes dois dias já estava a sentir os músculos a contrair, a minha urina já saía mais amarelada do que o normal, um pouquinho a subir para o vermelho, porque o organismo vai sugando os líquidos espalhados pelo corpo. Felizmente, na terça-feira, eles recuaram e inventaram uma lei – aliás, a lei entraria em vigor na sexta-feira, mas na terça-feira já disseram que iríamos beneficiar dela. Claro que aí já não fazia mais sentido continuar. Mas antes de parar a greve garanti com os advogados, que foram ter comigo nesse dia, que realmente o Procurador-geral da República havia dado a tal conferência de imprensa a dizer que iríamos para casa na sexta-feira. Claro que a palavra dele não me bastava, mas seria um pouquinho insensato da minha parte continuar.

Estava realmente convicto de que a não ser assim iria até às últimas consequências?

Estava convicto. Em momento algum pensei em desistir. Na cadeia estava com o antigo comandante provincial da Polícia Nacional, o comandante Quim Ribeiro, e tinha alguns livros dele que estava a ler por empréstimo e fui devolvê-los e disse-lhe: ‘Vou enveredar por um caminho em que já não quero contacto com ninguém’. Já nem com os meus companheiros de cela eu falava, porque também estava em greve de silêncio. Já estava a me despedir das pessoas próximas para que não me contactassem. Lembro-me que o Quim Ribeiro disse-me: ‘Não, fique com os livros’. Respondi-lhe: ‘Ainda bem, pelo menos vou morrer com alguns livros, será muito bom’. Ou seja, estava realmente convicto de que ia morrer. Mesmo quando me encontrei com a minha filha, apesar de ter chorado bastante, não tirei a ideia da cabeça.

Acha que esse seu radicalismo acelerou o processo da libertação?

Não, aí só fomos para casa, para prisão domiciliária…

Sim, mas pelo menos da saída da cadeia e ir para casa…

Em Angola, é muito difícil perceber as coisas e o governo angolano funciona mesmo como uma máfia. Eles, se calhar têm coisas preparadas para fazer, mas nunca fazem sem serem pressionados. É muito interessante – e isto está também dentro do que chamam desespero – que durante todo o tempo na cadeia não conseguimos nada que era de direito sem reivindicar. O estar na cadeia é um micro exemplo de como funciona a sociedade: está tudo escrito, tens os teus direitos, mas para consegui-los é preciso muita pressão. Irmos para prisão domiciliária numa terça-feira à luz de uma lei que só entraria em vigor na sexta-feira parece mais do que evidente que tinha sido por causa da minha greve extrema. Porque eles podiam esperar, como é hábito, que a lei entrasse em vigor. O certo é que tudo lá funciona com pressão, se não fosse a pressão nem sequer estaríamos em liberdade e, mesmo esta lei entrando em vigor, talvez nem sequer fosse aplicada.

Falava na carta que esteve 2093 horas sem ver a luz do sol. Estava fechado numa cela sem luz?

Sim, as celas em que ficámos durante três meses eram celas sem penetração de luz. Depois de duas ou três semanas, também por pressão, conseguimos direito a uma hora de sol por dia. Saíamos, ficávamos ali expostos ao sol como se fôssemos peixes secos e depois voltávamos a ser trancados. Se o dia tem 24 horas, menos uma hora, fiz o somatório dos três meses e deu as 2000 e tal horas. Houve dias em que eu não saía da cela, preferia não ir para o sol, porque não me fazia bem aos olhos. Depois de 23 horas trancado, o impacto da luz fazia-me muito mal. Em consequência, hoje eu uso óculos.

Afetou-lhe os olhos?

Sim, mas afetou outros também. Acho que somos quatro que passámos a usar óculos. Atualmente, ainda tenho muita dificuldade em andar ao sol, estar exposto a luz muito forte. Porque há outra coisa: quando entrei na cela, nem tinha lâmpada sequer. Acho que entrámos num sábado e só puseram a lâmpada na terça. E essa lâmpada foi posta, claro que devido à minha pressão, mas graças a um recluso que lembrava sempre aos agentes que na cela do Sedrick não havia luz. É bom dizer que também foi graças ao próprio agente que teve de ir comprar a lâmpada na rua, do bolso dele, porque a cadeia não tinha lâmpadas em stock.

Chegaram a perceber na prisão toda a onda de solidariedade internacional que se tinha criado à volta do processo dos 15+2, o movimento Liberdade Já?

Só tomei conhecimento disto quando fui para a cadeia de São Paulo, em outubro, se não me engano. Eu estava completamente isolado, não podíamos ter acesso a jornais, com exceção do Jornal de Angola, por ordem do regime, nem à rádio ou televisão. O que a minha esposa e familiares me transmitiam quando me visitavam é que havia muito apoio, mas eu estava preso e encarava aquilo como forma de me manterem tranquilo. Quando fomos para a cadeia de São Paulo e comecei a receber os jornais e percebi a dimensão do apoio, tive a sensação que não seríamos libertados. Não nos iriam absolver e admitir que todo o mundo estava certo. Tinham que dizer que estavam certos e condenar-nos. Até tinha feito os cálculos de que iria cumprir dois anos de cadeia e sairia da cadeia com perdão, amnistia, pena suspensa…

Acha que serviu para alguma coisa a vossa prisão e todo o apoio internacional que conseguiram?

Serviu sobretudo para desmascarar a ditadura, o regime ditatorial angolano. Tinha-se uma imagem de José Eduardo dos Santos de que era um democrata, um visionário, de que só estava no poder há tanto tempo por razões superiores a ele, de organização do Estado e tudo mais. Foi necessário essa onda toda para perceber que não é isso que tem acontecido. José Eduardo dos Santos tem usado o país como se fosse uma empresa, aproveitando-se de todas as riquezas e enriquecendo toda a sua família e os seus amigos. Afinal de contas, em Angola há um ditador e mais nada, há um ditador como o do Zimbabué, como outro ditador qualquer, um ditador sui generis que conseguia passar a imagem de democrata. Conseguiu realizar eleições, mas é tudo uma farsa. Hoje a União Europeia quer saber exatamente como é que a Isabel dos Santos conseguiu o dinheiro que conseguiu, como é que é a mais rica de África. Agora já é possível ver-se o sistema judicial a despoletar processos contra os filhos do José Eduardo dos Santos e dos seus companheiros, como Manuel Vicente.

Em relação aos partidos da oposição, sentiu que estavam com a vossa luta?

A oposição deu-nos muito apoio e houve pessoas dentro dos partidos da oposição que se solidarizaram mais do que a própria organização. Agora, os partidos enquanto tal, podiam ter feito muito mais. Aquela fase era uma altura propícia para se instalar o caos, a ideia de que isto tinha de mudar. O nível de descontentamento aumentou, o número de pessoas informadas sobre a situação real do país aumentou. Porque, curiosamente, o próprio MPLA, a partir das suas máquinas de comunicação, fez chegar a mensagem a várias partes do país e as pessoas perceberam que, afinal, o que não estava bem era o partido da situação, que prendia miúdos para acusá-los de golpe de Estado. Se os partidos da oposição aproveitassem aquele momento para meter as pessoas na rua ininterruptamente, se calhar teríamos uma galvanização do povo, da sociedade para ser mais exigente com estas eleições que vão acontecer agora. Era só pedir às pessoas para ficar na rua e as pessoas ficariam.

Isaías Samakuva, numa entrevista, dizia que a UNITA não o tinha feito porque era o que o regime estava à espera para depois poder instalar a violência.

Isto é certo, o regime angolano há muito parece estar desesperado para voltar à guerra e só ele tem capacidade para fazer guerra, porque só ele tem as armas. Mas se a oposição tivesse conseguido fazer passar a mensagem de que não tinham armas, como nós, miúdos, conseguimos – de que não tínhamos armas, nem tínhamos capacidade para dar um golpe de Estado –, também teriam o apoio que nós tivemos. Se, por exemplo, a oposição decidisse sentar no pátio da Assembleia Nacional por 24 horas, por mais que inventassem que eles estavam armados, as pessoas começariam a questionar-se. ‘Se têm armas porque estão sentados e não em posição de combate? E não estão em posições estratégicas?’ O povo angolano hoje já não é tão estúpido assim, já não é tão desprovido de conhecimento como antes.

Acha que, de alguma forma, a oposição também faz parte do regime?

Paul Biya, nos Camarões, certa vez disse exatamente isso sobre a oposição camaronesa: ‘A oposição aqui é a posição, são também da situação, é uma questão de momentos.’ Em Angola parece-me que há estes momentos de que Paul Biya fala, no sentido em que a oposição é muito passiva. Os benefícios a que os partidos da oposição têm direito – por serem legalmente reconhecidos, por terem assentos parlamentares – não é o MPLA que lhes dá, é o Estado. Parece que há em Angola muita dificuldade dos partidos da oposição para perceberem isso, olham para os benefícios que recebem como um favor cedido pelo MPLA. Isto é grave, não se pode conceber assim a política.

A oposição tem reiterado a possibilidade de poder haver fraude eleitoral, pelo facto de a Comissão Nacional Eleitoral estar dependente do Ministério da Administração do Território (comandado pelo candidato a vice-presidente do MPLA, Bornito de Sousa), pelo registo eleitoral não ter sido transparente e haver gente que não aparece nos cadernos eleitorais ou está recenseada a grande distância de casa, pelo facto de a contagem dos votos não ser feita na assembleia de voto, mas centralizada em Luanda. Acha que tudo isto justificaria um boicote eleitoral por parte da oposição?

Claro. Eu não voto. Não votei em 2012, não voto este ano. Os elementos mais básicos para a organização de uma eleição não estão acautelados e só por esse facto a oposição não deveria participar. Eles têm apresentado os seus argumentos, dizem que na democracia tem de se mudar as coisas desde dentro. Enquanto estudante de Direito sou muito inclinado pelo cumprimento escrupuloso das leis, sempre que as leis são justas, sempre que são as leis que devem realmente existir. A própria participação da oposição e o incentivo às pessoas a participarem de um pleito com esta composição, com esta organização, estão, também, a violar, claramente, a Constituição. Estão a dizer que não importa, estão a passar ao povo a mensagem de ‘mandem lixar a Constituição’ e o povo percebe que, afinal de contas, a Constituição não tem peso, não tem valor. O presidente da bancada parlamentar da CASA-CE, almirante Miau [André Mendes de Carvalho], chegou inclusive a a fazer uma declaração na Assembleia Nacional onde enumerou um monte de atropelos ao processo e em que disse que o seu partido consentiu em função de um bem maior que é a realização das eleições. Isto é uma estupidez, porque consentir todas aquelas anomalias não pode dar outra coisa senão fraude. Estaline dizia que ‘não importa quem vota ou em quem vota, o que importa é quem conta os votos’ e o que está a acontecer em Angola é isto. Quem conta os votos é quem organizou as eleições, no caso o governo, o MPLA. Quem começou é quem vai fechar, não tem como nesses dois extremos existir transparência e a oposição está a passar a mensagem de que se vão bater para que seja transparente. É tudo uma farsa e os partidos da oposição, infelizmente, participam dessa farsa, na qual eu não posso participar. Muita gente me critica, mas não posso participar e tenho a minha consciência tranquila. É esta a mensagem que quero transmitir às pessoas, a de que se tem de respeitar os princípios democráticos, ainda que vivamos numa ditadura. Enquanto estivemos presos, em momento algum violámos princípios democráticos. E no momento em que cometemos um deslize, em que escrevemos nas camisolas, num ato de desespero, para passar a mensagem, pagámos por isso, porque afinal de contas é um bem público, as camisolas foram feitas com dinheiro público e devem ser preservadas. E hoje há um processo judicial a correr por causa disso. Quando fomos descalços para o tribunal, perguntámos aos nossos advogados se existia alguma lei que nos proibisse. A nossa preocupação sempre foi a de estar dentro dos limites legais democráticos e a oposição não tem feito esse jogo de passar a mensagem de que é possível, dentro de uma ditadura, fazer respeitar a democracia. E isto é grave. Quem quer chegar ao governo e quer substituir uma ditadura passa a mensagem de que é possível violar as leis. Se não és mesmo democrata de raiz é bem provável que quando tenhas poder não sejas democrata – não querendo com isto dizer que a oposição não deve chegar ao poder. Eu sou defensor de que em Angola a mudança de regime é tão necessária que até mesmo partidos em quem não confio deviam chegar ao poder para que entremos num ciclo de mudança, que depois nos vai fazer tomar consciência do poder que a mudança representa.

Acha que se a oposição tivesse boicotado as eleições o impacto para haver mudanças seria maior?

Acho que sim. Nós estamos num ciclo de mesmices. Em 2008, houve eleições e girámos no mesmo eixo; em 2012, houve eleições e giramos no mesmo eixo. Este ano, a única novidade neste simulacro eleitoral é a ausência de José Eduardo dos Santos. A oposição continua isolada, não vai unida, inclusive acusam-se entre eles na campanha eleitoral. O sistema eleitoral continua sob a tutela do MPLA. A miséria dos programas políticos, da própria campanha dos partidos da oposição continua. Não há novidade. Os que estão a concorrer hoje são os mesmos que concorreram em 2012 – só há uma diferença no PRS que tem outro candidato. Continuam a insistir no mesmo, não se modernizaram. O boicote em 2017 poderia servir para demonstrar verticalidade, integridade, e em 2022 estariam muito mais bem posicionados.

João Lourenço poderá ser um homem capaz de fazer a transição para um regime mais democrático?

Eu não tenho essa fé em João Lourenço. Por duas razões, por ter sido indicado pelo ditador em exercício – o diabo não vai indicar um anjo – e por ter usado nos seus discursos expressões muito musculadas. Antes de iniciar a campanha foi para Moçambique. a partir de onde fez ameaças aos partidos da oposição, dizendo que não se pode dar espaço aos malandros. Isto é grave. Desde que ele se tornou ministro da Defesa, a repressão em Cabinda aumentou. Se a repressão aumentou, tem o dedo do João Lourenço. Depois há o facto dele estar citado em vários casos de corrupção, como a falência do BESA [Banco Espírito Santo Angola]. Com todos estes passivos, acho que é impossível ele desprender-se da cúpula, porque também está amarrado a toda a teia que compõe o MPLA.