A morte não lhe fez o bem que faz por outros. Dez anos passados sobre o desaparecimento de Eduardo Prado Coelho, e mesmo se a caneta não lhe caiu da mão ao passar-se para a “outra margem”, deve notar-se que não foi tão célere quanto alguns terão desejado a entrada em decomposição da sua presença; aquele espírito assombra-nos hoje do lado da ausência como antes fazia, tão inquietante umas vezes, e outras só irritante. Mas é já uma diferença assinalável o facto de não ter visto a sua memória embalsamada, atingido pela frieza de uma qualquer unanimidade.
EPC persiste uma figura tão polarizadora quanto antes. E se aos 63, quando morreu, não era personagem que agradasse inteiramente a ninguém, um dos seus talentos, como reconheceu Pedro Mexia, era “essa voracidade do ‘nada que é humano me é estranho’”, que levava a que, ainda que empurrado pela vaidade, assumisse uma “capacidade de risco (e de ridículo) que fazia dele um intelectual, ou seja, uma pessoa com uma imensa curiosidade pelo mundo”.
Não foi, certamente, “o último crítico”, mas na sua aplicação tão teimosa e, às vezes, exasperante, foi entre nós “o último intelectual dominante”. Manteve uma intervenção decisiva ao longo de quase quatro décadas, e apesar de toda a afectação, ou até graças a ela, soube confundir a sua personalidade e discurso com a apoteose de um período de debate cultural que desde a sua morte entrou num declínio excruciante. É mais uma coincidência, que também poderia vestir-se de maldição.
Se muitos recusariam as saudades de Eduardo Prado Coelho, só um fervor obscurantista poderá justificar que não se sinta a falta do tempo no qual ele se distinguiu como o “o actor mais disponível, mediático e plural da cena portuguesa”, um período tão mais dinâmico que o actual, em que se assistiu a um confronto cultural que, se tinha enormes fragilidades, era mais cativante e permitia uma educação. O acentuado declínio e fechamento do campo de actuação em que a palavra tinha primazia, esse campo de trocas e relações mais pensadas, desacelerando o mundo, para criar a tão necessária pausa ou lentidão, de modo a que a reflexão e contemplação dessem um passo em frente, dominando as emoções. Isso foi o que claramente se perdeu.
Recordemos uma passagem dos diários de EPC – “Tudo o que não escrevi”, volume 1: “Duas citações de Wittgenstein: ‘Por vezes uma frase só pode ser compreendida se for lida com o tempo que convém. As minhas frases exigem ser lidas com lentidão.’ A outra: ‘Em filosofia, aquele que ganha a corrida é aquele que é capaz de correr mais lentamente. Ou ainda: aquele que atinge o objectivo em último lugar.’” E depois Prado Coelho prossegue: “A ideia inicial tem a ver com uma velha obsessão minha: a velocidade com que se apreende faz parte do modo de apreensão; um referente não é o mesmo referente se for apreendido de um modo lento ou de um modo acelerado. Noção que se teorizava com Paul Virilio: a velocidade, como o tempo e o espaço, faz parte das categorias transcendentais da percepção.”
Com esta razão em fundo, e retirando um irónico sentido das coincidências, seria possível, passados estes dez anos da morte da nossa mais omnívora e insaciável consciência, uma vingança sobre um tempo incapaz de um esforço de integração cultural. Um tempo sujeito à absoluta disforia, a uma velocidade e sucessão que neutraliza a capacidade de perceber e, na verdade, reflectir. Somos hoje seres cada vez mais opacos.
A ele “tudo lhe interessou, do cinema à poesia, da crítica literária, que teve nele o seu cronista-mor, à ficção, mar de sonhos sem fim que desde jovem se tornaram para ele uma precoce segunda life”, referiu Eduardo Lourenço. “E naturalmente a política, de que foi, cedo, comentador empenhado e que nunca de todo abandonou. De referências musicais estão cheias as suas crónicas e nada de provocador nelas o deixava indiferente. Como se precisasse das múltiplas pulsões do tempo que eles exprimiam para acompanhar as múltiplas eternidades do seu presente tão excessivo de dons e de urgência vital.”
Hoje o risco é inane, a cultura não tem recursos face aos imperativos do tresloucado capitalismo de consumo, e isso conduz a uma impunidade dos juízos, a uma incapacidade de cruzar o campo das manifestações públicas com “o plano da reflexão teórica, da intervenção crítica e da divulgação e mediação do saber” que tanto ganharam com a presença de EPC, como António Guerreiro notou, “tão assídua e actuante nas muitas direcções em que irradiava que, sem ela, toda a constelação cultural (ou, pelo menos as suas representações públicas) ganharia outra figura”.
Ficamos esclarecidos sobre o papel axial desenvolvido por EPC, pela forma como a sua “paixão das ideias, as mais subtis e paradoxais, as mais up-to-date também”, além de trazerem para a sua “escrita luminosa um eco de rara qualidade” (E. Lourenço), se traduziram numa perspectiva integradora dos aspectos culturais, criando uma visão panorâmica, informada mesmo se não especializada, e que era de um mesmo passo, cativante tanto quanto exigente.
A principal influência organizadora do pensamento e discurso de EPC foi a literatura, esse feixe semovente de signos e sentidos, deixando sempre margem para uma fuga, sendo claro que esse é o mais tolerante e ao mesmo tempo obstinado dos corações que pode insuflar eternamente outras paixões. Como sublinhou António Guerreiro, EPC sempre atravessou as fronteiras entre a alta cultura e a cultura de massas “com uma alegria infantil e até, por vezes, com a perversa expectativa de ser visto como o filho ligeiramente escandaloso de uma respeitável família”.
O único filho de Jacinto Prado Coelho, uma das figuras mais influentes não apenas como catedrático de Literatura Portuguesa Moderna, mas também como crítico literário e ensaísta, é interessante notar como Eduardo se quis “livre dos equilíbrios consensuais a que obrigam a formação universitária ou a rotina do jornalismo cultural, e livre das programações ideológicas que distribuíam com impiedosa cegueira os ocupantes do campo amigo e os do campo adversário (…), livre também para ser incoerente, contraditório, instável, deambulante, provocador, terno, insidioso, segundo a cadência emocional das horas e dos dias”.
Se algum consenso houve em torno dele, se há um reconhecimento que mesmo aqueles que frequentemente se colocaram no campo oposto ao das convicções ou posições por ele defendidas raramente lhe recusam, esse prende-se com ele ter sido, uma vez mais nas palavras de Guerreiro, “uma apurada estação meteorológica voltada para o registo, com carácter de urgência das ondas sísmicas do contemporâneo”.
O crítico, o ensaísta, o universitário, o divulgador, o anunciador que mantinha uma forte “cumplicidade com o ar do tempo” foi um homem que não desligava a cultura de uma certa radiância ou exuberância. A ênfase polemista que marcou a fase final e até o canto de cisne de um dos mais relevantes ensaístas das últimas décadas sobre uma dispersão fabulosa de temas e autores, não o menoriza, porque nos relembra uma vez mais que o importante na cultura, como também Herberto Helder deixou claro, é desapontar, desembaraçar-se das grandes expectativas (paralisantes) dos outros. Foi um privilégio que tenhamos podido tantas vezes achar detestável uma personalidade tão ilustrada e disponível para o confronto, tão interessada nisto. E ver agora como a sua tentação de ir a todas, como o intelectual “inorgânico” que nunca baixou os braços, e que se tantas vezes fez juízos disparatados e se foi muitas vezes um agente do regime, não recusava a sua atenção, caiu tantas vezes no “pecado da generosidade”, e isso acabou. A maldição parece então ser o facto de, depois da morte de Eduardo Prado Coelho, dez anos depois, com todo o barulho, a cultura ter ficado reduzida a um silêncio que chega a dar frio nos ossos.