O caso deixou em choque a comunidade portuguesa em Châlette-sur-Loing, uma pequena cidade com 13 mil habitantes a 100 quilómetros a Sul de Paris. No passado sábado, eram 17h30, um lusodescendente foi abatido pela Polícia depois de resistir a ordens para sair do carro e de tentar fugir ao cerco das autoridades. A assistir a tudo estavam vizinhos, alguns deles adolescentes. Luís Bico, de 48 anos, tinha acompanhamento psiquiátrico há vários anos e havia regressado de Portugal há poucos dias, para onde viajara na companhia da mãe, com quem vive em França. Segundo o SOL apurou, desentendimentos terão antecipado o regresso a casa.
Não é certo o que o levou a resistir à Polícia nem como tudo começou. Segundo a imprensa francesa, as autoridades foram chamadas depois de o homem ter ameaçado uma pessoa na rua com uma faca no centro de Montargis, ao lado de Châlette. Testemunhas registaram a matrícula do carro e a Polícia foi ter a casa do português, no bairro Kennedy, que fica na fronteira entre as duas localidades. Luís refugiou-se no Renault Scénic, ainda com a faca e, confrontado pelos agentes, terá ameaçado colocar bombas na cidade.
O momento de tensão ficou registado em pelo menos dois vídeos publicados nas redes sociais. Nas imagens, dois carros da Polícia cercam a viatura do suspeito e ouvem-se ordens explícitas para que o homem saia do carro. Seis agentes, de armas apontadas ao veículo, começam então a dar bastonadas nos vidros. Luís acelera contra o prédio e tenta recuar, embatendo no carro da Polícia. Os agentes reforçam a barreira colocando duas viaturas a travar as traseiras do carro mas Luís faz uma manobra e consegue deixar o cerco. Começa então o tiroteio. Nos vídeos, ouvem-se cerca de 20 tiros. O carro prossegue, avança sobre um relvado e viria a imobilizar-se uma centena de metros à frente. Luís fora atingido e morreria no hospital.
O funeral realiza-se este sábado, pelas 10 horas, na igreja de Nossa Senhora da Compaixão em Châlette-Sur-Loing. Segundo uma associação local de portugueses, uma semana depois mantém-se um clima de indignação. Em declarações ao SOL, por email, a associação Ronda Típica salientou que o homem era conhecido na comunidade, apreciado por todos e considerou desproporcional a reação da Polícia. «Sabiam dos problemas psiquiátricos e que não era um homem perigoso», disse a associação, que espera que se faça justiça. Durante os últimos dias, o ambiente no bairro tem estado tenso. Na madrugada de segunda e de terça-feira houve mesmo algumas viaturas incendiadas e um veículo da brigada anticrime chamado a intervir foi apedrejado. Segundo o SOL apurou, os desacatos estarão a ser causados por alguns dos jovens que estavam no local no momento do tiroteio e que contestam a intervenção da Polícia.
Os serviços municipais disponibilizaram ajuda psicológica aos habitantes e os autarcas encontraram-se com a família portuguesa, bem como o cônsul de Orleães, que visitou Châllete-sur Loing na quarta-feira. Em Portugal, o Governo fez saber na quinta-feira que acompanhou o caso desde a primeira hora e que mandatou o cônsul-geral em Paris para obter esclarecimentos junto das autoridades francesas. Ontem o Ministério dos Negócios Estrangeiros, contactado pelo SOL, fez saber que o pedido de informações é um procedimento normal tendo em conta tratar-se de um cidadão com dupla nacionalidade e as circunstâncias da morte. O Governo estará representado no funeral pelo Cônsul Honorário em Orléans, José Ribeiro Paiva, informou o MNE.
Resposta legítima?
A Polícia francesa abriu um inquérito ao sucedido mas o caso parece estar também a reabrir o debate sobre o uso de armas de fogo em ações policiais, além de ter motivado uma reflexão sobre a falta de meios na Polícia local, que tem de pedir reforços a Orleães, a 35 minutos de distância.
Mas é o uso de fogo que está no centro do inquérito a cargo da Inspeção Geral da Polícia Nacional de França. A lei francesa mudou em fevereiro e equiparou os procedimentos da Polícia de segurança pública ao dos militares que intervêm no policiamento civil, autorizando assim o uso de fogo em mais contextos, nomeadamente para deter um fugitivo.
De acordo com a nova lei, os agentes têm luz verde para disparar em caso de «absoluta necessidade», desde que haja uma ameaça à vida ou integridade física dos agentes ou terceiros e desde que, após duas advertências em voz alta, não seja possível defender de outra forma o local ou as pessoas à sua guarda. O uso de fogo é admissível quando não for possível travar de outra forma o indivíduo ou viaturas cuja ação constitua uma ameaça.
Os agentes terão solicitado um taser para imobilizar o indivíduo, o que não estaria disponível. «Os vídeos não dão o contexto da intervenção», salientou a substituta do procurador de Montargis, Laetitia Cohade. «Duram dois a três minutos quando os factos se desenrolaram ao longo de meia hora». Segundo a responsável, a autópsia, que teve lugar na quarta-feira, será determinante neste caso. Um dos aspectos a esclarecer é se os agentes atuaram à luz da nova lei. Foi recolhido o projétil fatal, remetido para perícias balísticas. A hipótese de terrorismo terá sido excluída mas não é público se essa ameaça chegou a ser considerada real pelos agentes no terreno. Luís teria cadastro na polícia, embora nunca tivesse sido condenado por qualquer crime, adiantou o presidente da câmara de Châlette-surLoing, Franck Demaumont, citado pela La Chaîne Info. O autarca, que logo depois do tiroteio chegou a questionar a qualidade do acompanhamento psiquiátrico durante o período estival, informou que Luís não era seguido pelos serviços de ação social municipais.
O que terá motivado o homem a sair para a rua com uma faca é, por agora, uma incógnita. Na sexta-feira anterior, um marroquino de 18 anos foi detido em Turkut, sudoeste da Finlândia, depois de ter esfaqueado mortalmente duas pessoas e de ter ferido outras oito. No sábado em que Luís foi abatido pela polícia, um ataque semelhante nas ruas de Surgut, na Rússia, fez sete feridos. Embora as autoridades suspeitassem de problemas psiquiátricos, este ataque acabaria por ser reivindicado pelo Daesh.
Neste caso, a pista terrorista não está em cima da mesa. A família materna de Luís é natural da aldeia de Fernão Joanes, perto da Guarda, onde o lusodescendente tinha estado a passar uma temporada. Segundo o SOL apurou, aparentava estar calmo. Emigrados em França há largas décadas, Luís nasceu já em Montargis, a 7 de junho de 1969. Segundo o Parisien, nunca terá ultrapassado a morte do pai há 30 anos. Teria um diagnóstico de doença bipolar.