Se pensarmos na forma como, há umas décadas, o cinema com alguma substância artística buscou refúgio no pequeno ecrã, parecem evidentes hoje os sinais de que essa migração, mais do que satisfatória, expandiu o horizonte de possibilidades ao alcance dos mais inspirados contadores de estórias do nosso tempo. Esvaziadas do seu esplendor de templo, as salas de cinema onde antes a imaginação ia apanhar pancada e ganhar novos sentidos tornaram-se zonas de pastagem para um neo-jurássico, com fitas de quase três horas, remakes às três pancadas, franchises zombificadores, numa paisagem desertificada, digna de um pós-apocalipse com pipocas espalhadas por toda a parte…
E isto com a complacência e desespero dos estúdios, que transformaram a indústria num casino, indo all-in com blockbusters serializados, regados a gasolina, num furor demencial de explosões, tiros, bombas, perseguições de carros, intermináveis cenas de acção espectacularmente enfadonhas, tudo para neutralizar a actividade cerebral, e imunizar todos de leituras mais consequentes face a uma realidade confusa e revoltante através de altas doses de entretenimento escapista. Sendo hoje a principal manifestação social o piadismo mais boçal, que se contenta com a trela que lhe estende a mais desmiolada autoreferencialidade da cultura pop. Assim se explica o facto de a lista dos actores mais bem pagos ser encimada desde há uns anos por ex-wrestlers, ex-rappers, grunhos musculados e princesas descartáveis. Tornou-se até difícil nomear com alguma segurança quem são os actuais membros da realeza em Hollywood, e é possível que não faça já qualquer sentido pensar a balbúrdia mediática que fez já o seu derradeiro assalto à Casa Branca com ilusões de distinção aristocrática.
Entretanto, quando a televisão se tornou uma lixeira a céu aberto, paradoxalmente tornou-se também o ponto onde o cinema conseguiu recuperar a sua dimensão enquanto arte experimental e onde todas as outras cruzam as suas fronteiras e se enobrecem. Exemplo disso mesmo é Fargo, a série baseada na longa-metragem dos irmãos Joel e Ethan Cohen. Com três temporadas, todas elas nomeadas para as principais categorias dos Emmy, houve rumores de que a série poderia ter chegado ao fim. Hoje, o criador da série, Noah Hawley, é um dos guionistas e realizadores mais assoberbados pela quantidade de projectos que dependem da sua orientação. Além de “Legion”, já outro sucesso, tem prestes a estrear “Doctor Doom” e uma adaptação do romance de Kurt Vonnegut “Cat’s Craddle. Segundo o presidente do FX, John Landgraf, é só da agenda de Hawley e da sua vontade que depende o regresso de Fargo. Portanto, vamos todos fazer figas.