Dizer-se que há um desastre humanitário no Iémen não é um exagero de linguagem. Ao país mais pobre na região – onde há anos a água potável não chega a grande parte da população, a comida é escassa e o material médico nem sempre existe – chegou a guerra, há já quase três anos, quando os rebeldes xiitas do norte se lançaram contra o presidente internacionalmente reconhecido, tomaram a capital e chegaram ao porto de Adem, no sul. Os motivos da guerra, em todo o caso, já quase se escoaram da consciência dos iemenitas. As próprias linhas entre inimigo e aliado esbateram-se desde 2014. Agora há sobretudo urgência e um estado permanente de crise, fome, sede, doença e “morte lenta”, como dizia recentemente um soldado que não recebe salário há oito meses, falando ao “New York Times”. Também esse soldado, Yakoub al-Jayefi, não está a exagerar. Passados meses a comer apenas leite e iogurtes oferecidos pelos vizinhos, a sua filha sofre de má nutrição, como muitos dos habitantes. Só conseguiu enviá-la para um dos poucos hospitais em funcionamento com dinheiro emprestado por amigos.
Os números da mais grave crise humanitária no mundo são reveladores e os cofres das organizações que tentam ajudar estão parcialmente vazios. As Nações Unidas estimam que acima de 70% da população precisem hoje em dia de algum tipo de assistência, sobretudo nos territórios controlados pelos rebeldes. Dezassete milhões de pessoas, ou 60% da população, sofre de insegurança alimentar. Quase sete milhões precisam de comida de forma “severa”, segundo o Programa Alimentar Mundial, o que quer dizer que estão em risco de inanição. Mais de três milhões de iemenitas fugiram de suas casas, os serviços de governo praticamente não funcionam, os funcionários médicos não recebem salários há quase um ano e metade dos hospitais não funcionam: alguns não têm pessoal e meios, outros, a maioria, foram bombardeados. Não há saneamento básico em muitas partes do país, a recolha de lixo não funciona porque os camiões foram atingidos, os trabalhadores não recebem ou os responsáveis morreram. Aceder a água potável é raro. Em três anos de guerra morreram mais de oito mil pessoas e 46 mil ficaram feridas.
Cólera A escassez, a sujidade e a destruição cozinharam aquele que, por estes dias, é o mais grave problema no Iémen: o maior surto de cólera no mundo, incomparável com qualquer outro em 50 anos, que contagiou já meio milhão de pessoas, matou quase duas mil e pode – avisa a Save The Children – afetar um milhão de crianças, que são quem mais sofre. Por cada dez minutos, aliás, morre uma criança com menos de cinco anos no Iémen por causas evitáveis. “A tragédia é que tanto a malnutrição como a cólera são fáceis de tratar havendo acesso a cuidados básicos de saúde”, explicava este mês Tamer Kirolos, do grupo humanitário Save The Children. “Mas os hospitais e as clínicas estão destruídos, os funcionários médicos do governo não recebem há quase um ano e a entrega de ajuda vital é obstruída”, prossegue. Ou, nas palavras do soldado Yakoub al–Jayefi – por quem combate, não se sabe ao certo, e não é impensável que o próprio Jayefi não o saiba também –: “Estamos a aguardar o cataclismo ou um romper de esperança dos céus.”
Dos céus, no entanto, surgem sobretudo bombas e não tanto ajuda. A guerra civil evoluiu de um confronto isolado para um palco internacional assim que a Arábia Saudita e a sua coligação de países do Golfo entraram em cena em 2015, alarmados com a possibilidade de os rebeldes hutis controlarem o país com o apoio iraniano – que existe, sim, mas parece ser exagerado por Riade. A intervenção militar permitiu às forças leais ao presidente exilado Abdrabbuh Mansur Hadi recuperar o sul do país, mas nos últimos meses não há sinais de avanços no terreno, embora os bombardeamentos prossigam e com consequências sangrentas entre a população civil. As alianças, para além disso, têm-se degradado, sobretudo no lado do governo exilado, cujos ministros se vão virando uns contra os outros e perdendo o controlo dos seus homens para milícias apoiadas por atores externos. Mas isso não quer dizer que as bombas deixem de cair. Só na semana passada, um bombardeamento saudita contra um hotel na capital matou dezenas de civis. Em ocasiões anteriores foram bombardeados funerais, casamentos e hospitais. Muitos dos oito mil mortos e quase 45 mil feridos da guerra vêm destes ataques. A Arábia Saudita recebe armas e apoio dos Estados Unidos e Reino Unido, mas os seus ataques aéreos são tão mortíferos e erram tantas vezes o alvo dos combatentes hutis que as Nações Unidas estão por estes dias a tentar incluir Riade na lista negra dos países em guerra que atacam crianças.