Quem conviveu com Balsemão nesse período [década de 1960]] recorda-se de que a sua abertura de espírito não se limitava à área política. Maria do Carmo Cabrita lembra-se de um homem de “ideias abertas”, “que procurava pessoas que o ajudassem a desenvolver a cabeça dele” e que tinha múltiplos interesses culturais:
O Francisco era uma pessoa preocupada com a sociedade, com a cultura, com o mundo de uma maneira geral – era um preocupado. As nossas conversas muitas vezes eram à volta disso. Não tinha uma conversa fútil. Gostava imenso de literatura. Falava se imenso dos poetas franceses.
Apreciava muito Jacques Prévert e [Paul] Éluard. Gostava imenso do [Antoine de] Saint Exupéry.
Li-o todo por causa do Francisco. Dizia que um dos livros que o tinham marcado era Um Sentido para a Vida [antologia póstuma de textos do autor de O Principezinho, publicada pela primeira vez em 1956 e 10 anos depois traduzida em Portugal]. André Maurois era uma referência para ele. Além disso, gostava imenso de viajar, já nos anos 60. Viajámos algumas vezes juntos. Ele não tinha espírito nacionalista.
Também Baptista Bastos reconhece a atenção dada por Balsemão à literatura: “Balsemão tinha uma outra cultura. Sabia quem era Herman Broch, quem era Roger Vailland – era um grande leitor de Vailland”.
E não só às letras, explica Maria do Carmo Cabrita: “Na música, ele era muito francês. Apreciava muito o Jacques Brel. Tinha a bateria numa espécie de garagem e regularmente treinava com ela”.
Outra caraterística que desde cedo se colaria à sua imagem foi a simpatia que sempre irradiou, uma afabilidade espelhada em sorrisos rasgados que iam de orelha a orelha e quase lhe faziam sumir os olhos. Tal atitude serenava conflitos e evitava crispações. Lucília Santos conta, a propósito de problemas existentes na secção de impressão do Diário Popular: “O homem da tipografia dizia-me sobre o Balsemão: ‘Ó menina, eu quero zangar-me com ele mas não consigo’”.
Vicente Jorge Silva procura definir em que consistia esse encanto: “Uma vez, quando era correspondente do Diário Popular, fui a Lisboa, onde tinha uma namorada que estava a estudar, e ela acompanhou-me ao jornal. O Balsemão recebeu-nos e fez-se um charmeur, como fazia sempre. É alguém que sempre achei simpático, que à partida tem um lado sedutor, agradável, uma pessoa civilizada. Claro que há o outro lado: há aquela laracha segundo a qual não se sabia se ele era liberal, no sentido profundo do termo, por fraqueza ou convicção”.
Se era fraqueza, havia momentos em que Balsemão se queria mostrar forte, como experimentou Maria Antónia Palla, alvo de um despedimento sumário em 1969:
Eu tinha a proposta de fazer em Paris uma reportagem de balanço de um ano do Maio de 68. Balsemão aceitou a ideia, chegou-se a trocar correspondência com Françoise Giroud, diretora de L’Express. Entretanto tive uma debilidade qualquer e o médico disse: ‘Você precisa de uns dias de descanso’. Achei que podia ir descansar para Paris, onde era mais interessante e me fazia melhor, descansava mais lá do que cá. Acontece que, quando lá chego, havia uma reunião da União dos Estudantes Franceses e o seu presidente, Jacques Sauvageot [um dos dirigentes do Maio de 68], tinha sido chamado para a tropa e a partir desse dia não podia mais falar.
O [Daniel] Cohn Bendit [outro dos líderes da rebelião] já não estava lá, e eu disse: ‘Para fazer o meu trabalho, tenho de falar agora com este homem’.
E fui para o sítio onde havia a reunião, entrevistei o Sauvageot e telegrafei a Balsemão toda contente da vida a dizer que tinha iniciado o trabalho combinado. Foi um sururu. Eu não tinha a noção de que, estando de baixa, não fazia sentido estar em Paris. O Balsemão mandou que eu fosse despedida.
Isso abalou-me imenso. Quando cheguei, fui falar com ele e disse-lhe:
‘Se eu fosse homem e fugisse com uma espanhola, de certeza que não seria despedida’. E ele: ‘Isso é verdade.’ Então ele telefonou ao [António] Ruella Ramos [diretor do Diário de Lisboa desde 1967] na minha frente a perguntar. Mas ele não precisava de ninguém. Compreendi que, no mundo do trabalho, havia regras que eu não conseguia ultrapassar, apesar de contestatária.
Baptista-Bastos refere outra faceta a que Balsemão ficaria também associado, e que, ao longo da sua carreira de empresário da comunicação social, dividiria opiniões: “Ele permitiu-me fazer coisas admiráveis no Diário Popular, mas era um sovina, um gajo lixado. De tal maneira que ficou com os fatos do pai. Um dia disse me: ‘Esta camisa, por exemplo, era do meu pai’. Não precisava. Há tempos, foi encontrada num alfarrabista uma carta minha para ele em que eu protestava porque só ganhava 12 contos e precisava de ganhar 15.” O jornalista não terá sido aumentado.
O regateio tido com Ruben A. à volta da remuneração pelos contos a publicar no Diário Popular repetir-se-ia com muitos outros colaboradores, e até de novo com o escritor, sete meses mais tarde, a 29 de agosto de 1965, numa carta onde Balsemão, num registo irónico, abordava a “reles questão monetária”: “Ponderadas as razões por V. Ex.ª invocadas na sua carta de 6 do corrente, tenho a honra de comunicar-lhe que o calibre da sua pena se apresentou para nós bem mais ligeiro. Assim, o preço standard de 500$00, embora atraente para V. Ex.ª, não é compatível com os nossos magnânimos mas rigorosos critérios. Julgamos que, por 400$00, V. Ex.ª poderá receber a generosa retribuição dos seus préstimos epistolares.’
Em paralelo com as suas funções no Diário Popular, Balsemão mantinha atividade na advocacia, tendo entrado para a Ordem dos Advogados em 1966, terminado o período de estágio profissional (que acabou por ser de dois anos – comprovação de que, na realidade, não existira o Curso Complementar de Direito). Segundo explicaria mais tarde, esta segunda ocupação, exercida apenas a tempo parcial, destinava-se a garantir a autonomia económica face à família: “Houve uma parte da minha vida em que fiz advocacia, em part time, para ter alguma independência.”
No escritório de Pedro Soares Martinez, trabalhava muito próximo de Francisco Costa Reis, com quem reforçou os laços de amizade que vinham desde o Mais Alto. António Gomes Mota lembra-se de quando se cruzou com ambos por uma questão profissional:
Em 1965, estando eu a trabalhar no setor jurídico do Banco Português do Atlântico [BPA], o Francisco Balsemão procurou-me com o Francisco Costa Reis. Pediram-me para falar no banco sobre aspetos de negócios. Isto revela o espírito prático dele. Foram ao banco falar comigo, dizendo que tinham uma sociedade com uns tipos que trabalhavam no ramo da construção civil e estavam a fazer um prédio. Não se limitavam a ser advogados, eram sócios dessa sociedade. Para mim, foi uma surpresa. Em defesa dele, diga-se que cumpriram sempre tudo.
O ex-diplomata Francisco Norton de Matos, colega de Balsemão em Direito e por essa via membro do círculo de amizades que na faculdade o empresário da comunicação social criaria para o resto da vida, enaltece esta entrega a projetos profissionais como preciosa em gente de tal estatuto social: “Só tenho a dizer bem dele. Sendo rico, podia fazer como os outros meninos ricos e viver de rendimentos, mas não, foi corajoso.”
Apesar da sua intensa atividade profissional, com uma família a cargo, incluindo os dois filhos que entretanto nasceram – Mónica em 1967 e Henrique dois anos depois –, Balsemão não desprezava os prazeres da vida, e não seria o matrimónio a condicionar os hábitos de playboy há muito adquiridos.
Na sua correspondência com Ruben A. (’vulgo, Rubinho’, como lhe chega a escrever em epígrafe), à medida que se vai aprofundando a amizade entre ambos, é possível detetar os sinais dessa vivência solta e descomprometida.
A 23 de novembro de 1966, numa carta datilografada a pedir ao escritor nova colaboração para o suplemento do Diário Popular ‘Quinta feira à tarde’, dedicado à vida cultural, Balsemão manuscreve em post scriptum:
“Na 2.ª F, farei o possível por não faltar ao lançamento do livro. Espero que haja uns copitos…” E, durante uma viagem a Moçambique, instalado no hotel de luxo Polana, em Lourenço Marques, escreve ao amigo num postal ilustrado enviado a 21 de junho de 1968: «Nesta relva fofa (do Polana) as loucuras que Rubinho não faria…’ Ainda nesse ano, a 21 de agosto, em carta pessoal ao outro, embora dactilografada sob a chancela do Diário Popular, conclui: ‘Na sua carta falava-me muito em chafarizes, mas pouco em raparigas. Então? Quando tiver tempo, escreva-me, com pormenores, o que pensa sobre a nossa eventual incursão nortenha.’ E noutra missiva enviada sete dias mais tarde, depois de declinar um convite do destinatário para ir ao Porto no fim de semana seguinte, alegando “ter muito que fazer por estas bandas”, é ainda mais explícito: “Logo que tiver notícias sobre a minha nova amante nortenha, não deixarei de lhas transmitir, pois, como não sou egoísta, gostaria que dela compartilhasse.”
João Braga traça, a este respeito, um perfil confirmado por muitas outras pessoas que conheceram Balsemão: “Qualquer menina atraente que lhe passasse por perto, não perdoava. Era uma caraterística dele.”
Na elite social portuguesa do tempo, o seu nome ganhara já fama pelo desassossego provocado no universo feminino. “Ao nível das mulheres, o Francisco Balsemão era considerado encantador”, confirma Maria do Carmo Cabrita. “E era mulherengo.”
Francisco Norton de Matos vê no ex-colega de Direito “um homem que gosta muito de mulheres, que sempre gostou”, admitindo ser por essa razão que prefere manter sob reserva um eventual depoimento acerca da vida do amigo daí para a frente, pois seria muito delicado abordar o capítulo feminino.
Jorge Arnoso via o exercício de sedução como uma prática permanente do amigo, independentemente do tempo e do lugar: “Fomos muitas vezes juntos para o ski. Começámos na Áustria, tínhamos vinte e poucos anos. Éramos nós, os dois casais, principiantes de ski. Ele também era lixado: mesmo na Áustria, em St. Anton, acompanhado da mulher, a Isabel Costa Lobo, ainda dava umas escapadas com outras. Ele vivia disso, era uma tentação. Não conseguia estar ao pé de uma miúda sem se meter com ela.”
A perturbação desencadeada por Balsemão entre o sexo oposto tinha equivalência em Belicha, que mesmo depois de casada não deixava os homens indiferentes. Joaquim da Silva Pinto fala de uma “mulher lindíssima – não era a cara, era o corpo”. Baptista Bastos recorda: “Balsemão tinha uma grande paixão pela Belicha, e ela era uma brasa.” E o advogado portuense Miguel Veiga, que estava prestes a tornar-se num dos maiores amigos e cúmplices de Balsemão, corroborará: “A Belicha, que cheguei a conhecer, era linda de morrer.”
A primeira linha do combate hedonista de Balsemão eram os fins de semana passados com os amigos na Quinta da Marinha, em Cascais, onde, segundo Maria do Carmo Cabrita, uma das convivas habituais, que também possuía com o marido uma moradia no local, “ele tinha já uma casa pequena, quase uma cabana, ou acabanada, pois o Francisco não é um mãos largas”: “Era uma casa de fim de semana. O Francisco só lá estava nessa altura, mas era onde ele queria viver. Os miúdos gostavam também. Mas a Belicha não queria. Eu passava lá imensos fins de semana.”
Os jogos faziam parte do convívio: “O Francisco tem um grande amigo, mas grande, grande amigo, o Luís de Correia de Sá, que era uma pessoa também informada, com quem tinha uma proximidade enorme. Jogavam os dois gamão o tempo todo. Falava-se do estado das coisas em Portugal. Aos fins de semana, se não jogavam gamão, jogavam golfe, enquanto eu dava passeios no campo. Ao jantar, íamos muito ao Frango Real em Cascais. Também era habitual frequentarmos o Van Gogo [conhecida discoteca de Cascais, que marcou a época, aberta em 1965]. No fim de semana não se ia à missa. O Francisco foi educado religiosamente, mas não me apercebi de que fosse religioso. Ele era muito desprendido em relação aos filhos, não muito presente nas suas brincadeiras.”
A imagem que então fica de Balsemão é de alguém, apesar de tudo, avesso a espaventos recreativos, contido, um pouco reservado até: “Não é pessoa de grandes festas e de grande social, é uma pessoa tímida. Mas ele gostava imenso de dançar. O ié-ié, por exemplo. Adorava sevilhanas, que eu dançava imenso com ele. Dançar era das poucas coisas em que ele se desinibia completamente.”
Por experiência própria, uma amiga da época, que prefere manter o anonimato, entende que o espírito algo recatado de Balsemão “não contradiz o facto de ser mulherengo”: “Também se meteu comigo, mas não aconteceu nada. Havia sempre uma tentativa da parte dele, mas eu não liguei. Eu também era tímida, muito nova. Nada se passava.”
Amiga também da mulher de Balsemão, a mesma testemunha fala de uma reciprocidade de comportamento por parte dela: “Eu achava que a Belicha era muito para a frente. Portanto, era uma companhia perigosa.”
E considera Joaquim da Silva Pinto: “Se Balsemão era mulherengo, ao que parece ela [Belicha] também se vingava.” Segundo João Braga, “Belicha era muito solicitada, mas tudo começou com as facadas dele”. Baptista Bastos é sintético a este respeito: “Facadas no matrimónio? De parte a parte.”
Um casamento assente em tais bases, por muita cumplicidade que pudesse existir entre os cônjuges, estaria sempre sujeito a um tremendo stresse numa sociedade conservadora como era a de Portugal na década de 1960. Balsemão, aliás, de acordo com João Braga, preservava uma atitude de gelosia na ligação com os seus relacionamentos femininos: “Ele ficava piurso se alguém dirigisse os olhos para uma mulher com quem ele andava envolvido. Era ciumentíssimo.” E se se praticavam jogos entre os elementos do casal, o homem entendia que havia limites em relação à mulher, como testemunhou Maria do Carmo Cabrita: “Lembro-me de um jantar de amigos em que um belga passava papelinhos à Belicha. E o Francisco, às tantas, disse-lhe a ela: ‘Passa para cá o papel.’ Não era uma relação aberta, até porque o Francisco, quando via alguém aproximar-se, reagia – e como eu o vi reagir!”.