Continuam a ser muitos os mistérios do cérebro, mas uma equipa liderada por Rui Costa, da Fundação Champalimaud, acaba de revelar mais um. Como é sempre preciso descomplicar um pouco, usemos metáforas astronómicas. Numa zona profunda do cérebro chamada estriado, que nos humanos tem o tamanho de um berlinde, parece existir um mapa que guia cada um dos nossos movimentos.
A descoberta foi feita em ratinhos mas sugere que todas as nossas ações, de cada vez que as realizamos, iluminam uma constelação particular de neurónios nesta zona. Os sinais surgem alguns milissegundos antes de se iniciar o movimento e mantêm-se durante a atividade. Ações idênticas, imagine-se um remate com o pé direito com a força, “iluminará” o mesmo grupo de células. Se for um pouco ao lado, ativa-se um grupo de neurónios parecido, com pontos em comum. Se for a perna esquerda, já será um pouco mais diferente. Agarrar numa chávena acenderá toda uma outra constelação e numa área mais afastada deste mapa, até aqui escondido mas que parece conter as coordenadas de tudo o que fazemos.
A descoberta de como a organização “espaço-temporal do estriado codifica as ações no espaço”, os termos técnicos, foi publicada ontem na revista científica “Neuron”. A investigação levou quatro anos e foi coordenada por Rui Costa, investigador da Fundação Champalimaud e da Universidade Columbia, nos Estados Unidos.
Ao i, Rui Costa explica que há três anos, quando viram os primeiros sinais destas constelações no cérebro de ratinhos, começaram por ter dúvidas. “Era um resultado demasiado bom para ser verdade e o cientista desconfia”, sorri o investigador, que a certa altura pediu a colaboração de um estatístico do Zuckerman Institute para ter a certeza de que estavam a ler bem os dados. Tudo confirmado por métodos distintos, surge agora o artigo.
Sabia-se que o estriado era uma zona fundamental na seleção de ações nos animais, mas até que ponto a máquina está programada, com este mapa que não só codifica as ações como as codifica em função de semelhanças, foi uma surpresa.
O achado surgiu depois de instalarem câmaras microscópicas no cérebro de ratinhos e catalogarem os seus movimentos. No fundo, foi como fazer um endoscopia a um cérebro em ação, experiência que dificilmente poderá ser feita em humanos, diz Rui Costa. Ao monitorizarem 300 neurónios, conseguiram perceber que cada ação era precedida da ativação de uma constelação diferente. Ao ponto de bastar ver as células que eram ativadas para saberem o que os ratinhos estavam a fazer.
Perceberam então que o mapa tinha uma lógica: a proximidade entre constelações não terá tanto a ver com os membros usados ou a direção do movimento, mas mais com os músculos mobilizados e, outra surpresa, as funções. “No mapa, os neurónios que codificam os dedos e a boca dos ratinhos, que usam para comer, estão perto, embora estejam longe no corpo”, exemplifica Rui Costa. São muitas as questões em aberto: que ligações existirão de facto ou será que este mapa se organiza em função daquilo que fazemos? E, se assim é, nascerá connosco ou resulta das aprendizagens e experiências? E se o treino é crucial em algumas atividades, será que ativar uma vez uma constelação de um dado movimento (por exemplo um remate perfeito) tornará mais fácil repeti-lo? O mecanismo também poderá explicar porque é que sabemos, sentimos até, que uma ação não foi exatamente igual a outra.
Num campo menos teórico, abrem-se portas na investigação clínica: perceber as dinâmicas do movimento pode levar a melhores tratamentos para doenças como o Parkinson ou comportamentos impulsivos. A título experimental, os cientistas poderão usar feixes de luz em modelos animais para inibir neurónios em atividade quando não é suposto estarem. Encontrar medicamentos que possam repor os padrões normais de neurónios seria, porém, uma hipótese mais concretizável.
Para isso, agora que existe este tese sobre como o cérebro aciona o movimento, é preciso perceber o que está errado quando há uma doença ou distúrbio. “Será que, quando temos uma impulsividade para determinada ação, essa constelação está mais dominante, expande-se?”, pergunta Rui Costa, em busca de mais respostas.