1.Cavaco Silva interveio, ontem, em Castelo de Vide para os jovens sociais-democratas, alunos da Universidade de Verão do partido (iniciativa muito louvável do incansável Carlos Coelho). Como seria expectável, o discurso de Aníbal Cavaco Silva suscitou reacções várias: tornou-se mesmo o facto político do dia de ontem, prolongando-se as análises, os comentários e as reacções (mais ou menos epidérmicas) às palavras do político português recordista de vitórias eleitorais.
2.Pela nossa parte, só temos a saudar o regresso do Professor Aníbal Cavaco Silva à vida política nacional, após um interregno de vinte e dois anos: Cavaco Silva decidiu despender os últimos anos na consolidação da sua carreira académica, reflectindo sobre política económica e financeira (arranjando um escritório com vista privilegiada para o Jardim do Império e para o Rio Tejo) – bem como na doutrinação sobre os efeitos positivos dos consensos políticos entre as duas principais forças partidárias. De facto, o Cavaco Silva que vimos em Castelo de Vide apresentou uma energia, uma vitalidade, uma argúcia política, uma queda para o “sound byte”, para a frase curta e bombástica, tão ao gosto dos media – que em tudo contrastava com a imagem do Aníbal Cavaco Silva, Presidente da República na última década.
3.O Cavaco presente e bem presente em Castelo de Vide, não foi certamente o mesmo que exerceu funções presidenciais entre 2006 e 2016: porventura, tratou-se do primeiro sinal da renovação do pessoal político prometida (e tão urgente que é!) por Pedro Passos Coelho. E que aquisição tão sonante! Passos Coelho conseguiu contratar o Neymar da política portuguesa, sem recurso a fundos do Qatar – o Cavaco Silva de ontem foi o Cavaco das maiorias absolutas do PSD, das vitórias eleitorais consecutivas até 1995, das reformas estruturais que Portugal empreendeu, da afirmação na Europa, do relacionamento privilegiado com os EUA que se logrou obter, da politica externa ambiciosa, da expansão da classe média e do orgulho geral em ser português.
Passos Coelho conseguiu, pois, o impossível: recuperar o Cavaco Silva, ex-líder do PSD e político profissional que odiava os políticos profissionais, após vinte e dois anos de longa e demorada ausência. Passo Coelho está, pois, de parabéns!
4.De facto, o Cavaco Silva da última década (o Cavaco-Presidente) revelou-se invariavelmente ponderado, sensato, excessivamente parcimonioso, ausente quando deveria estar presente, presente quando deveria estar ausente – já o Cavaco de ontem (o Cavaco refugiado desde 1995 em parte incerta) foi brilhante na análise, mais emotivo do que racional, truculento, impulsivo, um guerrilheiro político que percebe o que a plateia quer ouvir e age em conformidade. Ou seja: Cavaco foi o anti-Cavaco da última década.
5.Dito isto, não podemos acompanhar aqueles que criticam Cavaco Silva por se referir, em termos desajustados, ao Presidente em exercício de funções, Professor Marcelo Rebelo de Sousa.
Há aqui um erro de análise: na verdade, Cavaco não criticou Marcelo – Cavaco criticou Cavaco.
Não foi um discurso de ex-Presidente da República contra o actual Presidente da República: foi um discurso de ex-Presidente da República contra o ex-Presidente da República. Foi um reconhecimento das falhas da sua Presidência: Cavaco reconhece que deveria ter tomado decisões que não tomou, deveria ter um estilo mais interventivo que nunca teve, deveria ser portador de uma visão para o país que era partilhada por todos aqueles que nele confiaram, deveria, enfim, ter defendido a Constituição quando José Sócrates instituiu a “República das Bananas (e das Lenas)” em Portugal.
Fica, destarte, muito bem a Cavaco Silva a assunção de responsabilidades no desembocar na maior fraude político-constitucional que se chama geringonça.
6.Acresce, ainda, que Cavaco Silva não falou como ex-Presidente da República: falou como actor político que regressa ao activo. Efectivamente, ouvindo o histórico líder do PSD em Castelo de Vide, ficámos com a percepção de que Cavaco quase que prepara o seu regresso à liderança do partido social-democrata.
O discurso não foi de ex-Presidente da República – foi de líder partidário. Parece inclusive que Cavaco Silva e Passos Coelho trocaram de papéis – Cavaco falou como líder; Passos Coelho falou como ex-Presidente da República. Isto porque o estilo e o tom dos discursos de Passos têm sido bem menos abrasivos – e bem menos eficazes! – contra o PS de Costa do que a alocução surpreendente de Cavaco Silva.
Ah, que falta fez este Cavaco ao país na última década! Que pena que Cavaco só tenha renascido após sair de Belém!
7.E Passos Coelho fez bem em estar presente em Castelo de Vide, propositadamente para ouvir Cavaco? Julgamos que não: Passos Coelho deveria ter dado o palco inteiramente a Cavaco, reservando a sua aparição em Castelo de Vide apenas para o dia de amanhã.
Porquê? Porque, desta forma, Passos Coelho deu força à narrativa do PS e da imprensa dominada pelo PS – a de que Cavaco Silva sempre serviu os interesses partidários imediatos do PSD. Que Cavaco sempre deu a mão ao PSD, prejudicando intencionalmente o PS.
Nós sabemos que esta história não passa de uma mentira monumental – mas o PS, com a cumplicidade dos jornais ao seu serviço, construiu esta falsidade com mestria. E, no caso português, em matérias relacionadas com o PS, uma mentira dita muitas vezes torna-se verdade.
8.Por outro lado, Cavaco Silva é, hoje, porventura muito injustamente, o político mais impopular entre os portugueses – o PSD de Passos Coelho ao colar-se tão ostensivamente a Cavaco sofre o efeito inevitável da sua popularidade.
Se a vida já não está fácil para Passos, o efeito de contágio da impopularidade de Cavaco Silva torna-lhe a vida ainda mais difícil. Já para não dizer que Passos Coelho, ao ter como grande trunfo Cavaco Silva, reforça a ideia de que está colado ao passado – e revela-se patologicamente incapaz de preparar o futuro.
Enfim, quer defender tanto o seu passado – que, às tantas, se esquece que a base social eleitoral do PSD quer é começar, sem mais delongas, a construir o futuro. Com ainda mais esta agravante, que ainda não foi devidamente assinalada: ao aparecer junto de Cavaco, Passos Coelho empurrou Marcelo Rebelo de Sousa para junto de Costa. Quem ganha? António Costa, que passa a beneficiar ainda mais da popularidade do Presidente da República.
9.Uma nota derradeira sobre as eventuais críticas de Cavaco ao Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Primeiro: os ex-Presidentes não estão impedidos constitucionalmente de se pronunciarem sobre os Presidentes em exercício de funções. Nem se diga que existe entre nós um costume constitucional de os anteriores Presidentes se absterem de comentar os Presidentes em exercício de funções: basta pensar nas críticas violentíssimas de Mário Soares contra o Presidente Cavaco Silva, em 2013.
10.Refira-se, ainda, que Marcelo Rebelo de Sousa, ao afirmar que as críticas entre Presidentes enfraquecem o respeito pelo Povo pela instituição Presidente da República, está certo.
Por isso é que o Presidente Obama se afastou da intervenção política, pelo menos pública, apesar das suas críticas à Administração de Donald J. Trump. Ou que George W. Bush foi forçado a silenciar o seu desprezo pelo Presidente Trump, motivado até por vingança familiar. Os americanos sabem que há uma realidade superior a qualquer cidadão que temporiamente exerce funções políticas – e essa é a Pátria, a sua continuidade para além de cada um de nós, e a defesa da Democracia.
Não há democracia, sem instituições democráticas sólidas – e não há democracia sem confiança dos portugueses naqueles que assumem a Chefia do Estado em cada momento histórico.
12.Nem tão pouco têm razão os que acusam Marcelo de incoerência: o comentador Marcelo Rebelo de Sousa, em 2013, criticou Mário Soares por criticar o então Presidente Mário Soares. O argumento? Exactamente o mesmo: as críticas entre Presidentes afectam a percepção pública sobre a instituição Presidente da República. Neste ponto, portanto, Marcelo esteve bem.
13.Para nós, em suma, o ponto mais grave é o seguinte: Portugal precisa, neste momento histórico, da voz prudente e sensata de Cavaco Silva. Mas a voz tem que ser ouvida – e para ser ouvida, tem que ser respeitada. Ora, o ex-Presidente da República ao escolher a Universidade de Verão da JSD (independetemente dos muitos méritos desta iniciativa política) perde força. Porquê? Porque escolheu para sua primeira intervenção de fundo, após cessar funções, um evento partidário.
Cola-se, por esta razão, a uma parte do país. Este discurso teria tido mais força caso Cavaco o proferisse num sítio mais institucional e fora da realidade partidária. De todo o modo, face ao pântano em que se encontra o nosso Estado – fruto exclusivo da fraude política que é a geringonça – , a maioria dos portugueses que querem construir melhor para si e para as suas famílias tem que se mobilizar em massa. Todos somos precisos – incluindo os ex-Presidentes da República, Ramalho Eanes e Cavaco Silva – para fazer Portugal regressar ao futuro.