Vai Portugal de abalada até Budapeste para defrontar, este domingo, na Groupama Arena, a Hungria no caminho que se espera triunfante até à fase final do Campeonato do Mundo de Futebol a disputar na Rússia no próximo ano. Têm sido os húngaros adversários agradáveis para os portugueses ao longo da história, com um sublinhado especial para a vitória em Manchester, na estreia lusitana num Mundial, precisamente o de 1966 na Inglaterra do nosso contentamento.
Mas vamos mais atrás no tempo. Recordar um daqueles momentos únicos que marcaram para sempre a modernidade do jogo.
A Hungria, a Grande Hungria, é a personagem principal deste episódio inesquecível e irrepetível.
O palco é o de Wembley. As lendas precisam de palcos assim para reforçarem o mito.
Velho Wembley, saudoso Wembley, não este erguido sobre os seus escombros. Perante mais de 100.000 espetadores, a Inglaterra viu-se batida na sua ilha pela primeira vez em 90 anos.
É obra. É de estalo!
Claro que não era a primeira derrota dos ingleses em Wembley, mas tive o cuidado de dizer batidos na sua ilha, porque também a repartem com os escoceses, por exemplo, e os Inglaterra-Escócia já vêm lá dos idos de 1892.
Regressemos à Hungria.
Campeões Olímpicos em Helsínquia, em 1952, batendo a Suécia na meia-final por 6-0 e a Jugoslávia na final por 2-0, os húngaros atingiam o ponto mais alto da sua fama. Desde Maio de 1950 a Julho de 1954, cometeram a proeza de disputar 31 jogos consecutivos sem perder, somando vinte e sete vitórias e tão somente quatro empates, marcando o exagero de 147 golos. A derrota viria no ‘jogo impossível’: a final do Mundial de 1954, frente à Alemanha (2-3).
Nunca ninguém fez sequer parecido. Não admira que os ingleses os esperassem, nos subúrbios de Londres, na sua Catedral, com um misto de admiração e de excitação: «Mighty Magyars!»; «Magnificent Magyars!»; «Magic Magyars!».
Esgotavam-se os elogios.
Mal sabiam o que estava para acontecer. Convenhamos: seria impossível de adivinhar.
Um triunfo estrepitoso!
Em Wembley, o triunfo dos Mágicos do Danúbio foi estrepitoso: 6-3!. Adotando um estilo à base do desenvolvimento dos lances pelos corredores laterais, servindo-se para o efeito dos passes efetuados com precisão pelos seus dois interiores – Puskas e Kocsis – e aproveitando o facto da defesa inglesa optar por defender mais junto à grande-área, a Hungria teve nos seus dois extremos – Budai e Czibor – as grandes figuras do encontro.
O treinador, Gustav Sebes, que chegou a trabalhar nas fábricas da Renault, em Paris, era um obcecado pelo aprumo físico (E sim, nessa altura, ainda Puskas não tinha a sua notável barriguinha…) e inovara o futebol com a ideia da mobilidade permanente do avançado-centro que recuava muitas vezes até à linha do meio-campo para, depois, surgir embalado de frente para a baliza adversária.
Por seu lado, pretendeu a Inglaterra defender mais sobre a sua própria grande-área, convicta se calhar que aí poderia impor a maior planta física dos seus defesas. Erro fatal.
Se era na zona central do terreno e dentro da área britânica que se disputava a batalha decisiva pela supremacia no encontro, os húngaros impuseram com facilidade a maior classe dos seus jogadores e a sua superioridade técnica. A sua velocidade de execução permitiu-lhes enlouquecer positivamente os adversários à custa de fintas, simulações, triangulações rápidas, desmarcações prontas e remates espontâneos. Aos seis golos marcados pela Hungria poder-se-iam ter somado vários outros, tal foi a diferença entre os dois ‘teams’.
Maravilhado com o espetáculo a que acabara de assistir, o público de Wembley aplaudiu de pé a melhor equipa que jamais havia pisado um relvado de Inglaterra.
Por curiosidade, deixemos aqui os nomes dos protagonistas daquele que ganharia, com inteiro mérito, a designação de verdadeiro «Jogo do Século»: Inglaterra – Merrick; Ramsey e Eckersley; Wright (cap.), Jonhston e Dickinson; Stanley Matthews, Taylor, Mortensen, Sewell e Rob. Hungria: Grosics; Buzansky e Lantos; Bozsik, Lorant e Zakarias; Budai, Kocsis, Hidegkuti, Puskas (cap.) e Czibor. Marcaram os golos: 0-1 por Hidegkuti (1 minuto); 1-1 por Sewell (15); 1-2 por Hidegkuti (20); 1-3 por Puskas (24); 1-4 por Puskas (27); 2-4 por Mortensen (38); 2-5 por Bozsik (52); 2-6 por Hidegkuti (54); 3-6 por Ramsey (60).
A Inglaterra que uns anos antes esmagara Portugal, no Jamor, por inacreditáveis 10-0 (cinco golos em cada parte, como num desafio de miúdos de mudar aos cinco e acabar aos dez), desmoronava-se ao peso da sua veterania (Matthews, o melhor dos ingleses, já tinha 39 anos!) e compreendia de forma dolorosa que as grandes selecções continentais tinham seguido um processo evolutivo capaz de levar de vencida os seis métodos excessivamente cristalizados.
Marcou-se a desforra!
Um cavalheiro inglês tem sempre direito à sua desforra!
Pior ainda. Budapeste tornou-se abracadabrante!
No seguinte mês de Maio, a derrota inglesa foi ainda mais terrível: a Hungria venceu por 7-1!!!
No Nepstadion, os magiares mostravam estar prontos para o Mundial da Suíça. Perante mais de 90 mil espectadores, fizeram gato sapato do seu opositor: golos de Lantos (10 minutos); Puskas (17 e 71); Kocsis (19 e 57); Hidegkuti (59) e Tóth (63); a Inglaterra marcou por Broadis (68).
Stanley Matthews já não jogou. Livrou-se de mais uma humilhação.
A lição de Wembley
Mas voltemos a Wembley e ao Inglaterra-Hungria.
Essa foi, verdadeiramente a onda de choque, o terramoto. Os 7-1 serviram somente como uma réplica que justificava considerar a Hungria como a melhor seleção do mundo, ainda que a derrota na final do Campeonato do Mundo, frente à Alemanha que derrotara na fase de grupos por 8-3, abalasse profundamente essa convicção.
Alguns portugueses sentaram-se, nesse fim de tarde, nas bancadas de Wembley. Entre eles, um que ganharia enorme importância na vida da seleção nacional de futebol: Manuel da Luz Afonso, um dos grandes responsáveis, se não o maior responsável, pelo êxito dos Magriços em Inglaterra, em 1966.
Manuel da Luz Afonso gostava de aprender.
Acompanhado de Faustino David, antigo jogador do Vitória de Setúbal, costumava deslocar-se ao estrangeiro para ver, como carola, os grandes confrontos europeus. No final, também ele assombrado com a qualidade dos húngaros, diria: «Devia-se comprar o filme deste jogo para que fosse exibido e explicado aos nossos jovens jogadores. Seria uma boa lição e talvez valesse mais do que muitas horas de treino».
Os mestres húngaros dominavam o futebol.
Tão longe já vão esses tempos que ficarão para sempre pendurados na parede onde se pregam as fotografias dos mitos.