Ele nem acredita em Deus. Mas se Chico Buarque é ateísta, o certo é que há algo de divino nele, nem que seja o ouvido atento a esses caminhos por onde as almas vão descalças, uma atenção suave de quem tem linha e isco no meio da criação, e busca esses sentimentos rápidos, que alteram tudo, contente por passar uma vida de volta das palavras, mesmo que o suspiro chegue e, no fim, ele fique a meio da frase.
Na parcimónia que é um traço tão seu, e com a sua assumida preguiça, Chico Buarque caiu cedo bem no fundo do gosto brasileiro, e com os anos só foi escavando mais. É bom lembrar como “A Banda”, logo em outubro de 1966, no Festival da Record, foi um sucesso para o qual só recentemente obtivemos um paralelo – com a vitória de “Amar pelos Dois” no Festival Eurovisão da Canção. Foi tal a sensação que não houve esquerda nem direita, nem cima nem baixo; o país rendeu-se, e nesse período de graça absoluta, houve até elogios do reaccionário Nelson Rodrigues.
Mas vamos lembrar o entusiasmo nas palavras de Carlos Drummond de Andrade: “Viva a música, viva o sopro de amor que a música e banda vem trazendo, Chico Buarque de Hollanda à frente, e que restaura em nós hipotecados palácios em ruínas, jardins pisoteados, cisternas secas, compensando-nos da confiança perdida nos homens e suas promessas, da perda dos sonhos que o desamor puiu e fixou, e que são agora como o paletó roído de traça, a pele escarificada de onde fugiu a beleza, o pó no ar, na falta de ar.”
E depois estava lá o rapaz com pouco mais de vinte anos e aquela graça que garantia que não podia ter sido só um acaso. Ainda que não pudesse adivinhar-se as décadas de uma tão longa sedução, as mulheres foram as primeiras a saber entre elas que aquele jovem tímido ia demorar-se no encanto, com olhos de uma cor que não se fixa, mas vai e volta entre o verde, o azul e o cinza, de uma beleza que coça a sua melancolia. Entre as primeiras a explicar esse fascínio esteve Clarice Lispector, que falou numa crónica de uma visita que recebeu dele, certo dia, em sua casa. Já então (1971) essa esfinge das letras brasileiras reconhece o lado triste de quem, às tantas, se sentia “aniquilado” pela fama súbita. Mas ela notou a sua capacidade de sorrir com o verde dos olhos bem abertos, sem riso nos lábios. “Não é um garoto, mas se existisse no reino animal um bicho pensativo e belo e eternamente jovem que se chamasse garoto, Francisco Buarque de Holanda seria dessa raça montanhosa.”
Por outro lado, em toda a sua obra, nas letras de canções, nas peças de teatro como, mais tarde, nos romances, as mulheres de Chico tinham também essa outra raça, esse perfil de figuras de outrora, em nada moderno, talvez porque intemporal, encanto de ter (a)prendido nelas a tensão tão delicada, a entrega e o sacríficio, como a dor e também a revolta, a coragem que anima a verdadeira disponibilidade para amar e estarem, afinal, vivas, do lado das virtudes incondicionais.
Recentemente, o homem que levou tantos anos estabelecendo esta confiança com as mulheres, dizendo-se que a sua facilidade vinha de já ter crescido entre diversas irmãs, amando outra mulher com quem viveu 30 anos, tendo tido três filhas, mas, recentemente, dizíamos, foi chamado de “machista” numa destas polémicas que são o pão nosso dos de barriga cheia. Afastado esse elemento que cultiva uma desordem superficial e electriza os animais mais fracos, elas até se revelam úteis, pois permitem voltar, ouvir de novo, ler anos depois o que ficou. Foi essa polémica, já esvaziada, que nos permitiu estar aqui e perguntar: Quem são, afinal, as mulheres de Chico Buarque?
Entre o bando que, hoje, vira tantas vezes a mesma lata para ter assunto e depois vir esgrimir, com maior ou menor talento, urgentes enredos, foram várias as vozes que, à boleia da controvérsia, proclamaram que já não era delas nem para elas que Chico cantava. Daniela Monteiro Torres, nascida em Angola, uma portuguesa a viver em Barcelona, e que assina a crónica “Palavras na Barriga”, na revista online “obvious”, embora reconhecendo a genialidade das letras de Chico e admirando “as suas melodias encantadoras”, diz que já não é sua: “Não sou de Atenas, sou do mundo. Não sou submissa nem obediente, não dependo nem me prendo.” E adianta: “As mulheres de Chico tinham sempre um homem; as mulheres de hoje têm amigas, um trabalho, uma casa e contas para pagar.”
Segundo Daniela, “as mulheres de Chico são as de um Brasil reprimido mas lutador, são de uma época onde nada era fácil, onde tudo estava por conquistar e descobrir. São mulheres de um mundo praticamente feito por homens e estão feitas de uma massa que hoje já pouco existe”. Se assume que busca inspiração nestas mulheres, por outro lado acusa-as de terem calado “as perversidades de uma sociedade castradora”. E se diz que Chico fala “da minha avó, da minha mãe, das minhas tias e de todas essas mulheres que amaram incondicionalmente”, a diferença para a sua geração é o ter reconhecido que “proeza de ser mulher, hoje em dia, é viver o dilema de sucumbir ao nosso ego e ambição e aprender a conciliá-lo com o chamamento uterino da nossa genética”.
Já Luciana Chardelli, com uma crónica na mesma publicação, assume que já invejou as mulheres de Chico, de Beatriz a Yolanda. Mas se refere que “há algo de misterioso em Chico Buarque, essa condição de falar pelas mulheres, e também pelos homens, chama mais a atenção do que seus olhos”, se reconhece que as canções dele são inescapáveis, também diz não ser uma das suas mulheres. “As mulheres dos versos de Chico pulsam, derramam leite. São mulheres que amam, choram, gozam, têm um tufão nos quadris e cortam cebolas. Mulheres de Atenas, de Ipanema, do trem lotado, do asfalto, do morro carioca.”
São duas entre inúmeras reacções à polémica, e em ambas é evidente que, mesmo dizer não a Chico, tem um custo, deixa uma hesitação dolorosa, como se fosse preciso rever demasiadas lembranças, muitas delas profundas e tocantes. Talvez seja quase um reflexo esse preconceito de tudo o que olha o passado com a sobranceria de se achar o futuro e, por isso, à frente na linha da evolução. É uma noção que a arte venceu há muito e até talvez tenha invertido num excesso conservador que não deixa de ser vicioso. Mas vale a pena repetir que não é porque uma coisa nos chega da antiguidade que ela assume algum cariz primitivo. O problema, hoje, é a dficuldade de um momento de “diarreia cultural”, em que quase tudo tem um vigor meramente efémero e a arte flirta com a sua condição mais descartável. Como pode hoje a consciência apressada, e tantas vezes fútil deste tempo, atingir a fineza do balanço de personagens em canções de outro tempo, não caindo no erro de julgar Joana, Carolina, Rita ou Luíza como mulheres que se deixam subjugar e dominar pelos homens que amam?
Escutar atrás da porta, para abri-la de rompante, sem saber bem que papéis se jogam dentro daquela intimidade forjada a dois, como a presa passa a predador, e, nisso de se revezarem, os amantes são infinitos, mas passar por cima disto, vir com um ‘olhar clínico’ para quebrar esse feitiço criado olhos nos olhos, é não perceber nada do movimento que Chico faz quando fala com a voz de Cecília, Beatriz, Bárbara.
São os extremos, é a coragem que se ganha da hora que veio antes, entregue inteiramente à fraqueza, como aquela mulher que diz: “Quando você me deixou, meu bem/ Me disse pra ser feliz e passar bem/ Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci/ Mas depois, como era de costume, obedeci// Quando você me quiser rever/ Já vai me encontrar refeita, pode crer/ Olhos nos olhos, quero ver o que você faz/ Ao sentir que sem você eu passo bem demais// E que venho até remoçando/ Me pego cantando/ Sem mais nem porquê/ E tantas águas rolaram/ Quantos homens me amaram/ Bem mais e melhor que você”.
Tem graça ouvir falar no “amor datado de Chico Buarque”; fica no ar a ideia de que, quase quatro décadas depois, as mulheres dele começaram finalmente a envelhecer mal. Se calhar, se Ana hoje se levantasse numa manhã a meio da sua vida tão ocupada, dos mil afazeres, da fulminante carreira, ao lado do marido que tem com ela um tratado de tordesilhas no que toca às tarefas domésticas, as crianças, os sacríficios, talvez se lhe desse nessa hora para ser “Ana das loucas/ Até amanhã/ Da cama, da cana, fulana, sacana/ Sou Ana de Amsterdam”… Se lhe desse para um amor datado, desses em que se cruzava o oceano na esperança de casar, admitindo ela, num surto absurdo e tardio de desespero e melancolia: “Arrisquei muita braçada/ Na esperança de outro mar/ Hoje sou carta marcada/ Hoje sou jogo de azar”.
Ou se ela se chamasse antes Joana, tivesse sotaque, uma figura apavorantemente doce, tão petite, tão escandalosa na sua beleza anos 1970, musa impossível, e se virasse para um pobre mulato mole e dissesse: “Vem molhar meu colo/ Vou te consolar/ Vem, mulato mole/ Dançar dans mes bras/ Vem, moleque me dizer/ Onde é que está/ Ton soleil, ta braise// Quem me enfeitiçou/ O mar, marée, bateau/ Tu as le parfum/ De la cachaça e de suor/ Geme de preguiça e de calor/ Já é madrugada/ Acorda, acorda, acorda, acorda, acorda, acorda.”
Ok, e mesmo que o amor esteja datado, e ainda que largar mulher e filhos por outra já não entre na lista das frases que as mulheres com menos de 30 anos querem ouvir, será que o homem tem o direito de falar sozinho? E de sonhar? Dá vontade de lembrar que o amor também é a história que cada um tem consigo mesmo. O balanço que faz dos seus fracassos, dos desejos que não levaram a lado nenhum, ou saíram em jeito de música, poema, gemido sem nexo nenhum.
Vale a pena, de resto, lembrar a pergunta e depois o conselho que Clarice Lispector lhe deu naquela tarde de que se sabe só o que ela quis contar. “Perguntei-lhe se já experimentara sentir-se em solidão ou se sua vida tinha sempre esse brilho justificável. Eu aconselhei que de vez em quando ficasse sozinho, senão seria submergido, pois até o amor excessivo dos outros podia submergir uma pessoa. Ele concordou e disse que sempre que podia dava suas retiradas.”
Há quem se vingue no piropo, vá pela rua atirando a sua vergonha à cara das mulheres que, já adivinham, lhe irão dizer sempre que não. Talvez tenham perdido o jeito e ambicionem fazer como aquele terceiro homem que apareceu na vida de Teresinha: “Como quem chega do nada:/ Ele não me trouxe nada,/ Também nada perguntou./ Mal sei como ele se chama,/ Mas entendo o que ele quer!/ Se deitou na minha cama/ E me chama de mulher.// Foi chegando sorrateiro/ E antes que eu dissesse não,/ Se instalou feito um posseiro/ Dentro do meu coração.”
Como as mulheres há muitos homens, há os tímidos que não deixam de ser criativos, e gostam de assediar a sua própria imaginação. Como naquele poema de Leonard Cohen – o irmão judeu de Chico Buarque, que talvez tenha morrido um pouco cedo antes que também ele fosse chamado de machista, de velho babado ou amante datado: “Que doce nos sabe o tempo/ quando fica tarde demais// e não tens de seguir/ as ancas balanceantes dela// por toda a profundidade/ da tua moribunda imaginação”.
E então, talvez chegue uma geração que o romantismo, por gentileza, deva saltar. Para não incomodar as senhoras e os senhores, tão preocupados com a batalha pela igualdade que não encontrei a diferença a partir da qual ganhem balanço suficiente para se apaixonarem, e para dizer como disse Elis Regina, dos degraus de umas notas de piano: "Dei pra maldizer o nosso lar/ Pra sujar teu nome, te humilhar/ E me vingar a qualquer preço/ Te adorando pelo avesso/ Pra mostrar que inda sou tua/ Só pra provar que inda sou tua”.