Em que outro lugar do mundo se pode comer uma patanisca a ouvir dois representantes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) a explicar o processo de paz colombiano? Ou se pode conversar com um representante do Partido do Povo do Irão (Tudeh), ilegal, clandestino, entusiasmado sobre as possibilidades de um dia outra revolução chegar ao Irão? Ou ter um representante das Edições Avante a confessar estar à espera de ser rendido para ir comer um ensopado de borrego?
Quando o jornal Avante! garante que “não há festa como esta”, o slogan impõe-se a cada momento nesta festa popular babélica que vai crescendo a cada ano que passa, naquela que muitos dizem ser a margem certa do Tejo, a esquerda. A Quinta da Atalaia, freguesia da Amora, concelho do Seixal, transforma-se, três dias por ano, num mundo de solidariedade nacional e internacional, ou, na definição do deputado Miguel Tiago, numa “janela para a forma como vemos o mundo”. E a “forma como vemos”, é a forma como o PCP vê o mundo, mas “qualquer um pode espreitar essa janela”. Isso sim, a partir do momento em que se entra no recinto (ou até mesmo nas proximidades), toda a gente passa a ser camarada: “a” camarada, “o” camarada ou o jovem camarada para os mais pequenos, talvez porque criança-camarada soava meio estranho.
Aliás, quanto mais melhores. Na nova entrada criada este ano, a da Quinta do Cabo, o Pavilhão Central está logo ali para cativar os presentes com uma exposição sobre os 100 anos da Revolução de Outubro na Rússia, uma loja de recordações que vende desde tapetes para rato até t-shirts com os desenhos estampados de Álvaro Cunhal, DVD de Ary dos Santos ou CD com a “Carvalhesa” – essa melodia tão viciante que mesmo quando não a ouvimos em lado nenhum, passa o tempo a soar na nossa cabeça.
Dizíamos, no Espaço, que também lembra as autárquicas que se aproximam (e o papel fundamental que a CDU tem mantido no poder autárquico) e promove debates (é impressionante a militância de quem consegue falar com entusiasmo sobre uma empresa municipal criada em Évora com o sol inclemente das três da tarde a queimar-lhe a cabeça), aí não falta o espaço para a adesão de novos militantes. E figuras importantes do partido (deputados, dirigentes) passam regularmente por ali para servirem de ímanes à militância. Por falar em ímanes, na loja de recordações vendem-se com as imagens dos cartazes da Festa do Avante! ao longo dos tempos – e são muitos, esta é já a 41ª edição.
Nostalgia e pontes para o futuro
O histórico deputado António Filipe, que encontramos no espaço de captação de novos militantes, fala de uma festa com “forte presença da CDU e das suas candidaturas, mas que transcende em muito as fronteiras do PCP”. É uma “festa muito alargada a outras tendências”, de acordo com Miguel Tiago. No geral, é um espaço que acolhe até gente que não partilha dos mesmos ideais, na explicação de Tiago, porque é uma festa atrai “cada vez mais gente”.
Política, música, teatro, desporto, literatura, partilha de experiências, nostalgia e pontes para o futuro, a Festa do Avante! tornou-se tão grande e abrangente que chega a ser cacofónica nas ofertas. Parado em determinadas intersecções, chega a poder ouvir-se o som de três palcos, mais a música das barracas de comes e bebes, a conversa das pessoas e o cérebro entra em loop sem se conseguir concentrar num ponto.
O ideal é não parar ou parar somente em sítios chave, onde só se consiga ouvir apenas uma coisa, ou pelo menos que o som seja tão potente que impeça outros à volta de interferir. Outra possibilidade (não recomendável aqui neste texto, que defende sempre a moderação) é atirar-se aos óptimos Pisco Sour nos peruanos do espaço internacional, numa barraca muito bem chamada de Macchu Pichu, pois ao fim do terceiro Pisco há quem comece a sentir efeitos similares às náuseas da carência de oxigénio sentidas por quem atinge Machu Picchu.
O espaço internacional pode até ser sonoramente tão ou mais caótico que o restante da Quinta da Atalaia, sempre com o Partido dos Comunistas da Catalunha à frente da intensidade da festa, com a mistura das músicas que o palco da solidariedade debita e as que sobem do Café Concerto, com o “Despacito” que os peruanos pouco revolucionários juntam e a música com que os cubanos nos atraem.
Com Hindi e Serena, casal de palestinianos a residir em Cascais há ano e meio, falamos de como é viver com um país dentro (mesmo fora, mesmo longe, a Palestina continua a ser a sua maior preocupação) e de um conflito que não tem mais fim. Ele optimista, sonha que sim (a esperança é tramada, planta até no solo mais seco); ela, realista, diz logo não à possibilidade de uma solução para o conflito israelo-palestiniano.
Hindi, o optimista, sabe, no entanto, que “a ideia dos dois Estados está morta, a não ser que se retirem os mais de meio milhão de colonos que Israel deixou instalar na Cisjordânia”. Resta, como sonho, mesmo estando do outro lado um “inimigo poderoso, um Estado militar”, a opção de “um Estado com direitos iguais” para judeus e árabes. Mas “Israel não quer isso”, nem sequer dá os mesmos direitos e trata da mesma forma os árabes-israelitas. “Em Israel vive-se em apartheid”, sublinha Hindi.
Estamos sentados no chão, Hindi estendeu o seu keffiyeh (o lenço palestiniano) sobre a terra para que estivéssemos ali à conversa. Não muito longe, a barraquinha da Palestina também os vende, embora sem ser o item que mais atenções atrai. A vendedora garante-nos que os presépios, as últimas ceias, os Cristos no Calvário se vendem muito bem. Vêm da Terra Santa – Belém, a Igreja da Natividade, ficam em território palestiniano.
Aliás, não é o único local na festa onde se vendem imagens de Cristos, o artesanato de Braga, trazido pela organização concelhia do PC, também as vende, e Santo Antónios e outros santos.
É também um reflexo “do carácter popular” desta festa em que comungam várias gerações. Famílias inteiras, de avós a netos, passando pelos pais, gente com mais de 80 anos e bebés de colo, alguns de poucos meses. Caminhando lado a lado, dormindo a sesta à sombra das árvores ou dos pavilhões, dividindo a primeira fila dos concertos. Na noite de sábado, a fila da frente do concerto de António Zambujo revelava-se como exemplo desse caleidoscópio de gente que tem nesta imensa festa popular programa que lhe agrade.
A camada de pó que democraticamente cobre todos os livros
O jazz pode soar no Auditório 1.º de Maio, enquanto, poucos metros mais acima, um grupo coral se dedica à interpretação do cante e pelo meio dos comes e bebes de Braga a Associação de Zés Pereiras de Basto dedica-se aos bombos. E enquanto o rap anima o Palco 25 de Abril, há quem prefira levar os putos ao carrocel ou a tirar fotografias com os Zés Pereira que volta e meia percorrem o recinto.
Aos militantes mais intelectualizados oferece a Festa do Livro debates que podem girar à volta da segunda edição do “Forte de Peniche – Memória, Resistência e Luta” (José Pedro Soares anunciou que no próximo sábado, dia 9, se inaugura em Peniche um monumento em homenagem aos presos políticos) ou sobre o livro de Bruno Drweski “A Nova Rússia é ‘de direita’ ou ‘de esquerda’”.
Limpando a camada de pó que democraticamente cobre todos os livros à venda, lê-se no livro de Drweski “a história demonstrou que as revoluções nunca morrem realmente e fazem surgir recorrentemente os seus efeitos” e a aí volta a soar o entusiasmo do velho dirigente do Tudeh, capaz de manter o optimismo mesmo com partido ilegalizado e perante o autoritarismo político-religioso do regime iraniano: “Quando se é ilegal toda a gente pode ser membro do partido”.
Na Festa do Avante!, da senhora que dorme a sesta à sombra de um pavilhão, tranquilamente deitada no chão como se fosse a sua casa, até ao bebé a quem a mãe muda a fralda em algum dos espaços criados no recinto, passando pelo jovem em coma alcoólico assistido e transportado pelos bombeiros, pelos jovens que bebem cerveja e saltam a levantar pó frente ao Partido dos Comunistas da Catalunha ou os que se solidarizam com a luta revolucionária bolivariana na Venezuela, todos podem ser ou não ser membros do Partido Comunista Português, porque, como diz António Filipe, “todo o país vem à festa”.
E esse país heterogéneo que passa pela Quinta da Atalaia todos os anos regressa a casa ao fim dos três dias, empurrando o carrinho das crianças dormindo, ajudando a avó rua acima, procurando a saliva que algum álcool a mais secou, com aquilo que Chico Buarque escreveu e Zambujo cantou no sábado, a encerrar o seu concerto no Palco 25 de Abril – a sua primeira vez no cenário principal da festa, depois de três atuações no Auditório 1.º de Maio: “foi bonita a festa, pá, fiquei contente e indo guardo, renitente, um velho cravo para mim”.