Não é preciso lembrar a ninguém como, aqui há uns anos, por causa das obras de Miró que ficaram na posse do Estado português após a nacionalização do BPN, das quais o executivo logo buscou desenvencilhar-se e embolsar mais uns cobres, se fez muito barulho e, por uma vez, mais do que digna, a causa soou como o grito claro de um país que, na penúria e, apesar do sufoco, não aceitava abrir mão da sua dose de aventura e até extravagância poética. Toda a linha de espantalhos da ideologia, desde os vigias nas torres do comentário político, aos taxistas, ninguém saía da linha, nem discordava de que, se não havia dinheiro para mandar cantar um cego, muito menos havia para Miró. E, apesar disso, uma vaga de fundo (sem dúvida impulsionada pelo oportunismo das lutas político-partidárias), conseguiu pôr em campo a vergonha, e às tantas já ninguém se sentia tão à vontade para vir dizer que passávamos bem sem as obras de um artista de primeira linha na vida íntima da imaginação no século XX. Portugal até foi notícia lá fora. Como depois de um período marcado por uma incrível sucessão de azares e desgraças, o país esgalgado, ainda compunha o cabelo, apertava as bochechas e deitava um sorriso a um caco de espelho. Miró era esse caco, essa lima para raspar uma saída de uma cela apavorante.
Nesta linda narrativa só havia um pequeno escolho: Miró. Ou antes, as 85 obras deste artista catalão, compradas pelo Banco a uma coleção privada japonesa e que abrangem um período de seis décadas do seu trabalho, de 1924 a 1981. Dizer que se trata de uma espinhosa amostra do génio de Miró é pouco.
Depois de Serralves ter alcançado um recorde em número de visitantes, ultrapassando as 240 mil entradas, é a vez do Palácio Nacional da Ajuda receber a exposição – “Joan Miró: Materialidade e Metamorfose”, que abre hoje ao público. As diferenças começam pelo espaço, com a galeria em Lisboa a permitir que se exiba a coleção na sua totalidade – no Porto, e por falta de espaço, sete das obras não puderam ser mostradas. O comissário da exposição, Robert Lubar Messeri não escondeu que, em Serralves, as obras tinham menos espaço para respirar, e destacou a vantagem dos tetos muito altos no Palácio da Ajuda, que permitiu repensar a mostra e explorar combinações até aqui impossíveis.
O comissário recusou, contudo, a ideia de que o público lisboeta terá uma perspetiva privilegiada, enfatizando a “encantadora” intervenção arquitetónica de Siza Vieira, preferindo realçar como cada projeto expositivo conduz a uma redescoberta da obra, e da forma como os seus elementos se cruzam e dialogam. Desta vez, o desenho da exposição ficou a cargo dos técnicos da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC).
Na apresentação à imprensa ficaram bastante claras as insuficiências que impedem o país de, mais do que reclamar a posse da coleção e a possibilidade de dela usufruir, fazer depois o mais importante: apresentá-la ao público de modo a que se possa ultrapassar a estupefação perante um artista a que o “The New York Times” chamou um “assassino em série das convenções artísticas”. É aqui que o país, face à debilidade das suas instituições no campo cultural, acaba por envergonhar-se a si mesmo e desperdiçar o próprio ímpeto que o levou a bater-se para segurar no património do Estado uma coleção de valor artístico indubitável.
Antes de irmos à pouco empolgante apresentação da mostra pelo seu comissário, deve referir-se como os representantes de Serralves, do Palácio da Ajuda e da DGPC, depois da troca de galhardetes, limitaram as suas breves intervenções a informações genéricas e a destacar alguns números quanto ao sucesso da exposição no Porto, no que uma vez mais reforçou o quanto, ainda que rodeados de obras descontroladas, que do silêncio dos seus inúmeros suportes e técnicas resfolegavam, imprimindo um tom de inquietação ignorado a favor da típica solenidade de figuras que se apagam na sua condição mais burocrática. De Joan Miró, de todos os seus 90 anos (1893-1983), e da obra de um artista visual que, em 1927, proclamou que desejava “assassinar a pintura”, não houve margem para o mais pequeno ensaio inconformista.
Portanto, cabia inteiramente a Robert Lubar Messeri, um dos maiores especialistas mundiais na obra de Miró, não só apresentar o artista e a sua obra, tentando, mais do que enunciar, traduzir a importância de tão diversa amostra, como ter alguma coisa a dizer sobre o que foi isso, afinal, que os portugueses ganharam ao impedir o leilão daquelas 85 obras em 2014, pela Christie’s de Londres, que na altura avaliou o conjunto em 35,9 milhões de euros.
Messeri conduziu os jornalistas pelo labirinto e, embora tenha, por várias vezes, apontado para esta e aquela obra, ameaçando uma nota de entusiasmo, ao dizer que se tratava de peças excecionais, emblemáticas ou geniais, quem não soubesse já o porquê ficaria na mesma. Com uma abordagem que se socorre da forma como, nos sucessivos ciclos da sua experimentação artística, Miró procurou tantas vezes nos materiais e nos instrumentos algo que lhe “ditasse” a técnica que deveria aprofundar de modo a dar-lhes vida, o comissário sublinhou como esta exposição é única, pois se trata da primeira vez em que a materialidade é o fio condutor desta abertura sobre a obra do artista. Mas se Messeri reconheceu que, apesar de algumas das obras da coleção estarem entre as mais emblemáticas de Miró, na maior parte dos casos, o visitante que buscar o confronto com ele através desta obra, terá não um, mas uma série de ossos de tamanhos muito diferentes, cada um mais duro de roer do que o anterior.
Se é certo que esta mostra se constrói a partir de um acervo algo acidental, daquilo que foi possível comprar de Miró e, portanto, não tem à partida pretensões propriamente didáticas, a sensação que fica, ao visitar a exposição, é que é esse elemento de mediação justamente o que falha. Com tanta preocupação com os números e o público, falhou o mais importante, que seria a apresentação do artista, permitir que se criasse um vínculo entre os portugueses e esta sua inestimável coleção.
“A ideia que a maioria das pessoas têm do Miró é a de um artista poético, lírico, e isso está certo, porque não deixa de fazer parte do seu percurso, mas aqui temos um artista muito mais agressivo, mais selvagem, mais experimental. Isto obriga-nos a alargar a nossa perspetiva sobre este pintor”, explicou Messeri ao i. Quanto a um qualquer suporte teórico, há o longo texto que o comissário assina no catálogo da exposição, que segue o percurso desta figura terrivelmente tímida, desenha um mapa das suas deslocações num campo de destruição implacável, na sua recusa “de toda a convenção pictórica (esse veneno)”.
Acontece que, quando pedimos a Messeri que se aventure além da revolução técnica, que retire consequências do ponto de vista do alargamento dos horizontes na relação com esse espaço de convenções traumáticas a que chamam ‘realidade’, e mostre a relevância desta obra hoje para o público português, o comissário diz que não pode comentar a questão política. “Esse é um aspeto que não me interessa nada”, refere. “Fico contente, não obstante, que a coleção fique aqui em Portugal, porque oferece muitas possibilidades para uma afirmação do país dentro do mundo da cultura. Ainda por cima, não é um artista português, mas um artista de dimensão internacional.”
Portanto, o país vai-se afirmar lá fora. Quanto ao conteúdo dessa afirmação, isso parece ser secundário. Já no que toca ao subtexto social desta obra, o comissário, que antes não se interessava por política, adianta: “Sou historiador de arte social, o que me interessa é a implicação da arte com os movimentos sociais.” E Miró, que exemplo nos deixou? “Miró, na sua obra, sempre se identificou como catalão, sempre lutou pela afirmação da cultura catalã. Lutou também pela dignidade humana, participando em movimentos sociais nos anos 50 e 60, afirmando-se como um artista comprometido ao nível político e social. Embora não tenha relação direta com Portugal, durante a ditadura franquista foi um exemplo de liberdade individual, e diria que o seu gesto como artista político tem também muitas leituras para o Portugal de Salazar.”
Ficamos esclarecidos quanto ao passado. Já só falta retirar consequências quanto ao presente, e ao futuro – se houver.