Proença-a-nova. Uma terra cheia de aldeias vazias

Quando perguntamos quantos vivem ali e os habitantes começam a dizer os nomes enquanto contam pelos dedos da mão, sabemos que chegamos onde poucis chegam. Em Proença-a-Nova são muitas as aldeias feitas de casas vazias e vizinhos que são a família de quem tem que andar muitos quilómetros para ter farmácia, café ou supermercado

Depois de muita autoestrada, vias rápidas e Scuts, o caminho final é feito em curva contra curva, numa esperança constante que não venha ninguém do outro lado que nos obrigue a encostar à berma para ceder passagem. Mas a verdade é que durante vários quilómetros, somos os únicos na estrada que vai dar a Mó.

A esta aldeia de Proença-a-Nova, não há quem venha de passagem e são poucos os que cá estão sempre, ao contrário do que faz parecer a quantidade de casas aglomeradas, que ainda ultrapassam a dezena. O que ainda se mantém de pé serve de abrigo a quem vem apenas passar as férias de verão ou fica como prova de que esta aldeia da recente freguesia de Sobreira Formosa e Alvito da Beira – mais uma que nasceu fruto da reorganização administrativa – já chegou a ter escola, taberna e bailes todos os domingos à tarde. Cenário difícil de imaginar depois de mais de meia hora de total silêncio, apenas interrompido por algo semelhante a um motor.

Subimos a ladeira e aquilo que parecia um motor, mais não é que uma máquina de lavar roupa a funcionar numa varanda, o que, a par da antena da ZON, das couves plantadas no quintal e da lenha acumulada para o inverno, são os primeiros sinais de vida desta aldeia que já acreditávamos ser fantasma.

É José Gonçalves quem vem à rua dar a cara pela família que, dividida por duas casas, completa uma aldeia de seis pessoas.

«Aqui vivo eu, dois irmãos e um sobrinho», conta. Com o dedo apontado para a rua de cima, explica que «naquela casita ali» vivem os tios Raul e Maria da Piedade. «Mas é melhor falarem comigo, que ela, ui, tem um feitio…». Conselhos destes são para seguir e é através das memórias de José que voltamos a uma Mó que chegou a ter até escola «e até um lagar». A ordem de importância só causa confusão a quem ainda não se apercebeu de que estamos nas Beiras, o azeite vale ouro.

Viver isolado

Desde que há uns dois anos deixou de haver autocarro diário, José tem que esperar pela carreira que passa só na quinta feira se quiser ir fazer uns trabalhos fora da aldeia. «Ou então vou a pé, como hoje. Três quilómetros e meio para cada lado para saber o que o patrão precisava e amanhã volto para pulverizar as oliveiras». Sem carro, esta família improvisa a semana com o que o campo dá e com os patos que criam na parte de trás da casa. 

O dinheiro extra vem só das jornas que José faz. «Jornas?», questionamos, na dificuldade de decifrar sotaques e expressões de um país que fica do outro lado do mundo. «Sim, os dias de trabalho que faço aqui e ali. É que eu sei fazer tudo: podar, cavar, plantar, desmatar», explica José que para fugir ao calor começa o dia ainda de noite.

Com 50 anos escondidos num chapéu que lhe dá ar de miúdo, nunca casou nem fez família. «Mas dizem que aos 50 a vida muda, não é? Vamos lá ver», diz, esperançado. Nunca pensou sair de vez, nem mesmo durante os 16 anos que trabalhou no Ribatejo na apanha de fruta. «Voltei sempre. A verdade é uma: se nós sairmos quem fica?». A pergunta nem precisa de resposta em palavras. Basta olhar em volta para perceber que quando os Gonçalves desaparecerem, Mó também desaparece. «Mas para já estamos cá e olhe, ainda vamos fazendo diferença. Ontem esteve cá a caravana do PS, até porque sabem que o meu voto é certinho», admite.

José fez sempre parte das listas para a junta, mas este ano não foi convidado. «É porque não precisam», dispara, mas sem rancor. «Até é melhor, que assim não me chateio e tenho mais tempo para as minhas tarefas». E a próxima, tendo em conta o relógio a bater as 14h e os mais de trinta graus na rua, é dormir a sesta, esse ritual sagrado de quem trabalha em função do sol e não do relógio.

Um autocarro por semana

E na aldeia ao lado, Herdade, entre desculpas e com licenças, acabamos por estragar mais umas horas de sono. É que, aos 84 anos, José Ribeiro já tem o  estatuto de fazer tudo sem horas. «Já trabalhei muito e sempre no duro. Agora é a minha vez de descansar», admite, ao lembrar as horas passadas ao sol, a extrair resina das árvores.

As poucas horas livres eram passadas nos bailes das aldeias ou a namorar, «mas à janela que isto não era como é agora», conta. De todas as raparigas da aldeia, escolheu Maria para casar e é com ela que ainda hoje vive. Com ela, com o filho e com a nora que se entretém na lida da casa, enquanto o marido não chega do trabalho.

O dia começa em função dele, com Paula a acordar ainda de madrugada para fazer o almoço que leva para o trabalho. «Depois disso já não vou à cama. Trato da horta, faço limpezas e vejo televisão. Mas pouca, que com isto tudo fico com pouco vagar».

Mas é ao fim de semana que esta casa ganha outra alegria. A filha Rita vem sempre que pode de Lisboa, onde trabalha como enfermeira. «Hoje está em greve, faz ela muito bem». Já o filho, Miguel, não passa uma semana sem vir de Castelo Branco, onde estuda, até porque é na casa da mãe que se abastece de comida e roupa lavada para a semana.

Ainda que de forma temporária, Miguel, o mais novo da aldeia, ajuda a baixar a média de idades de uma comunidade de 13 pessoas. «Agora não há nada, mas eu ainda cheguei a fazer cá a escola primária», conta Paula, «e quando fiz a quarta classe éramos uma turma de nove». É preciso estar atento à expressão de espanto para perceber que este número equivale a uma multidão.

No dia-a-dia, não parecem sentir falta de nada. «Cá vamos remediando», diz José, com a voz pausada de quem deixou a pressa para outras gerações. Mesmo assim, não abdica do autocarro de quinta-feira para ir a Proença pagar contas, ir às compras e almoçar fora. Já Paula sabe que se falha alguma coisa de mercearia, tem que percorrer vinte quilómetros até à Sobreira e quando quer passear no shopping, enfrenta 50 minutos de estrada até Castelo Branco. «É lá que vai ao cinema?», arriscamos perguntar. «Ui, já não vou desde que os meus filhos eram pequenos. Veja lá que o último filme que vi foi ‘A fuga das galinhas’». Contas feitas, já lá vão 17 anos. 

Uma família de vizinhos

Já deu para perceber que aqui tudo ganha outra dimensão. As horas esticam, ou poucos são suficientes, as conversas não têm pressa e ainda bem, porque nós também não. É por isso que, apesar de nos rirmos com o nome ‘Esfrega’ que dá início a uma aldeia que seria só de passagem, não resistimos a parar para saber mais sobre Helena, o único sinal de vida das redondezas.

Como hoje é terça falhamos o dia em que a aldeia vê chegar o que lhes falta todos os dias. É à quinta que vem o peixeiro, a carrinha dos gelados e a da mercearia. O padeiro, esse, vem todos os dias. «De resto não preciso de mais nada. Tenho porcos, galinhas, patos, coelhos e uma horta que me dá o resto», explica Helena, que aproveita agora a sombra para dobrar as meias e cuecas que acabou de apanhar do estendal. Aos 68 anos, vive apenas com o marido e é por isso que tem nos vizinhos o prolongamento da família.

Ainda que uns quilómetros à frente, a noção de comunidade mantém-se. Quando perguntamos a Fátima quantas pessoas vivem em Fórneas, pede ajuda a João, até porque os dedos das duas mãos não chegam. «Ora um, dois, três, aquele que veio de França, o tio Bernardino cinco, a Tia Maria dos Anjos seis, mais as casas lá de cima 16… Eh lá, somos mais do que pensava», exclama. Nem as mãos dos dois vizinhos chegam para contar os 25 que lá moram. «E damo-nos todos bem», garante.

Não há fim de tarde em que Fátima não pare na soleira da porta dos vizinhos antes de ir para casa. «Já que não temos um café, vamo-nos juntando assim», conta. Hoje, o ponto de encontro é na entrada da casa de Maria de Deus que, aos 47 anos, e contando que a filha sai no domingo à noite para Castelo Branco onde estuda, assume o posto de mais jovem da aldeia. «Veja lá ao que isto chegou», lamenta Fátima, lembrando que quando andava na escola chegavam a ser 50 alunos.

Mesmo assim, nenhum membro desta tertúlia alguma vez pensou deixar Fórneas. «Já estamos habituados a este ritmo», diz João, num tom que acompanha a frase, «já não me habituava a outro sítio». «E para quê?», atira Fátima, de braços abertos para a paisagem, «já viu esta maravilha?».
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