Histórias pessoais para partilhar não lhe faltariam – muito mais de azares que de fortuna, já se sabe –, dessas a que nenhum auditório fica indiferente: do naufrágio que sofreu a caminho de Macau ao episódio do coveiro do cemitério da Esperança “que vendia iscas de defunto a um pasteleiro vizinho”, e que Artur Anselmo recorda num texto que lhe dedica nos “Gigantes da Literatura Universal”; do dia aziago em que, numa ida a Setúbal, deu de caras com os trastes que tinham sido de seus pais, àquele outro em que se achou mais “pachorrento”, fazendo essa famosa selfie que ficou para a posteridade, que não o tem devolvido às suas geniais proporções.
Com o talento que nessa “selfie” a si mesmo reconhece, fez o que quis e quando quis, hierarquizando ele próprio os seus valores, prioridades e urgências, em caótica desordem: sonetos bem e mal esgalhados, cantatas, improvisos, epístolas, odes, idílios, sátiras implacáveis, dramas, elogios. Tão capaz de nos comover como de nos divertir, Manuel Maria Barbosa du Bocage foi um ser em baloiço, e, como tal, teve as suas ascensões e as suas quedas.
É provável que, por tropelia, fizesse hoje “like” naqueles que pomposamente a si mesmos se intitulam “escritores”, no receio de que o meio literário não dê por nada. Frontal, impertinente e cheio de graça oportuna, é bem possível que, depois, num repentismo fulminante, os chamasse a umas quantas sátiras, rodeando-os de “musas pequeninas”, postas a circular na rede acompanhadas de advertência: “Zoilos, tremei!”.
E não partilharia certamente frases da Chiado Editora, nem alinharia na literatura de t-shirt ou de caneca. Crítico da mediocridade, declarado opositor da “traficância da literatura barata”, Bocage, por ventura o maior poeta do século XVIII e um dos mais originais da língua portuguesa, par de Camões na arte do soneto, tinha pensamento próprio e não o guardava para si. Pudesse ele e logo teria publicado “As Cartas de Olinda a Alzira”, consideradas por Daniel Pires, o principal divulgador da obra do poeta e presidente do Centro de Estudos Bocageanos, “o primeiro manifesto feminista em Portugal”, só impresso em finais do século XIX, com especiais cautelas – sem a menção da data, editor, local ou organizador.
Tão-pouco acompanharia Bocage aquele género com a auto-estima invariavelmente nos píncaros e em estado de felicidade plena que abunda nas páginas do Facebook, sempre a distribuir sorrisos, a semear corações, a lavrar votos, a largar gatos, a debitar felicíssimos momentos. Não havia área da vida de Bocage que se possa dizer bem resolvida. E o poeta não fazia segredo disso: abria a porta da sua vida e da sua intimidade, dando-se a ver na sua própria poesia, ela mesma uma confissão, em ângulos pouco zelosos da sua imagem, a moinar, a padecer, a carpir.
Numa ode em que nos conta os seus dias em Goa, aonde chega em finais de 1786, refere como, ali, os seus versos foram recebidos com fria indiferença, como conspiraram contra a sua vida e como se achou na mais apertada miséria: “Aqui ninguém me atende (ó negro fado!)/ Nem deuses nem mortais ninguém me atende:/ tão molesto se faz um desgraçado”. Depois de Goa, foi o que se sabe: desertor de Damão, pedinte na China, repatriado por caridade – o lance final na carreira militar de um homem aos baldões, um genial desadaptado que nunca encaixou no seu século.
No plano familiar a vida também não lhe correu afortunada. Cedo perdeu a mãe para a doença e, diz-se, a mulher que amava para o irmão, Gil Bocage, mais concentradinho. Por outro lado, “ser prole de varões assinalados” também de nada lhe serviu. A Índia foi só tormenta e decepção. Se transitarmos para a esfera amorosa, à partida aquela zona em que as coisas melhor lhe corriam, o saldo não é mais animador: insensibilidades, ausências, ânsias, perdas, falhanços, ilusões traídas. Ainda assim, é de supor que não torcesse o nariz à sedução online, mantendo-se ligado horas a fio, para, no final, recolher essa coisa pouca que o amor se lhe revelou ser – “mimos feminis”. Pudesse este amante fatal ter notícia do “feed” dos modernos do século XXI e veria a sua má-estrela a brilhar como nunca.
O tempo que lhe coube viver, de convenções caducas e um bafio nauseante, só contrariado pelas correntes que as ideias da Revolução Francesa puseram a circular, foi um tempo sem cliques nem rede. Era uma época de trambolhões, trovas aleijadas, versos coxos e mazelas morais. A poesia, que então se empregava na bajulação dos poderosos, por vezes a única forma de retardar ou amortecer o tombo, não ensinava a cair. Não ensinará depois: a sua natureza é desequilibrar.
Presença assídua nas redes sociais, nem sempre por razões literárias, Bocage, que ali nos aparece ora em papéis de personagem cómica, ora na sua valência de humorista corrosivo, ora ainda na estranha qualidade de conselheiro sentimental, não teve continuadores à altura. Mas seguidores no Facebook, se o tivera, não lhe faltariam. Nem likes. O carisma e o talento imenso que o caracterizavam, expresso em improvisos de rima fácil mas também em versos exigentes, engenhosos, bem burilados, em traduções cuidadas de clássicos gregos e latinos, elogiadas até por Garrett, logo lhe trouxeram uma popularidade, que rapidamente se propagou ao Brasil, e que se traduzia numa legião de admiradores que se lhe renderam.
Muito embora a sua imagem física lhe tivesse merecido um olhar irónico (“Não devo à natureza um grande aspecto/ É verdade: meu mérito consiste / Num claro entendimento e puro afeto”), tivera Facebook e talvez não resistisse o vate de Setúbal a uma definida foto de perfil, até porque não era homem para se esconder atrás de um gatinho fofo ou de um qualquer boneco. Desde sempre apreciado de forma parcelar, é de crer que optasse por um retrato de corpo inteiro, um pé nos brios de que se encheu no final da sua curta vida (morreu em 1885, com escassos 40 anos), outro a saltar-lhe para o Nicola ou o botequim das Parras, onde tinha crédito ilimitado. Recusaria, por certo, os enquadramentos dos antigos manuais escolares, que o apresentavam ora sobre prados vestidos de boninas, entre Zéfiros e Marílias, com Tejo sorridente ao fundo, ora entre os escombros da Arcádia (espaço demasiado acanhado para o seu génio), fascinado por uma natureza selvagem. E isto porque a complexidade poética de Bocage não se contém na rigidez dos moldes clássicos e não fica fechada com as cores ditas pré-românticas da noite. Bocage extravasa das molduras. E não apenas das do mundo clássico, no seu tempo em agonia histórico-cultural. Na efervescência dos seus sentimentos, por vezes contraditórios, o poeta extravasou também das molduras que a si mesmo desejaria impor.
Adorador incondicional do género feminino, talvez optasse até por uma foto de perfil a dois, atualizada a cada meia hora, tal o friso de moças que quase se acotovelam nos seus sonetos: Marílias, Elmiras, Márcias, Gertrúrias, Jónias, Urselinas e outras tantas através das quais igualmente se revelam os seus índices de popularidade.
Seja como for, certo é que rejeitaria aqueles retratos fragmentários pintados com tintas malévolas de gosto popular, que lhe mancharam a imagem que se fixou na tradição e que o comum das gentes se habituou a fixar na parede lá de casa. Nesses retratos sobressaem, mais que os olhos azuis ou o “nariz alto no meio e não pequeno”, uns lábios finos, pelo riso nunca unidos, donde brota um anedotário sem fim, e outros produtos textuais facetos, quando não ordinários, que não deixam frincha para a grandeza da sua vasta obra, tão marcada pelo lirismo.
“Franças, Semedos, Quintanilhas,/ Macedos” e outros contemporâneos não figurariam entre a sua lista de amigos, e o “Almanaque das Musas” (1793), volume em que responderam às suas sátiras, diria porquê. Tão-pouco o Intendente-Geral da Polícia do tempo da Rainha D. Maria I, Pina Manique, que o acusou de ser “autor de papéis ímpios e sediciosos” e que lhe fixou residência na prisão do Limoeiro (das poucas que teve). Na lista de amigos, que nunca lhe faltaram, poucos mas bons. Pagava-lhes as dívidas com o metro, essa moeda de fácil alcance.
Não são precisos grandes feitos da imaginação para o imaginar a fazer “posts” sobre a posteridade, ele que algumas vezes se dirigiu ao “leitor vindouro”. Bocage parece ter acreditado, como poucos, que a sua imagem literária reunia atributos suficientes para viver depois da morte. E estava certo. O Facebook não engana.