“Nem esquerda nem direita, ninguém tem razão.” Diz Hermínio, sempre de volta àquele diálogo a preparar o final de “A Fábrica de Nada”, quando o filme se fez ensaio já. Podiam ser suas aquelas palavras de José Smith Vargas em conversa com Danièle Incalcaterra, realizador italiano a fazer de si próprio neste filme coletivo assinado por Pedro Pinho com produção da Terratreme, que chega hoje às salas depois de ter vencido um prémio FIPRESCI, atribuído pela crítica, em Cannes. “Ninguém conseguiu ainda encontrar solução.” Solução para quê? Para “isto”.
“Isto” é o que vemos pelo caminho de Lisboa até Póvoa de Santa Iria, em Vila Franca de Xira, onde Hermínio Amaro, 51 anos de vida e quase outros tantos de trabalho, nos espera. Fábricas fechadas, algumas devolutas, edifícios fantasma que, se um dia foram tantas vidas, são hoje o que sobra da violência dos anos da crise. “No filme digo que desde que me conheço que trabalho. Sempre trabalhei. Comecei ainda andava na escola e ajudava o meu pai na madeira, na Beira Baixa. O meu primeiro trabalho em Lisboa é o que muita gente tem: Círculo de Leitores. Depois, como não gostava de impingir coisas às pessoas nem de fazer contratos, virei-me para as fábricas.” Começou pela Sociedade Nacional de Sabões, em Xabregas, e passou por várias até, na década de 1990, ter chegado àquela onde trabalhou 21 anos. E que foi a última. Desde 2014.
“Praticamente, tudo o que me acontece no filme” – fala sempre de si, não de uma personagem – “aconteceu na minha vida. Há coisas que não são iguais – quantias, datas, algumas coisas que são ditas –, mas existe ali muita coisa certa. Nada ali é inventado. A diferença é que, muitas vezes, a realidade é ainda pior. Também a mim me ofereceram uma vez dinheiro para sair. E também não saí e, no fim, acabei por vir embora sem nada.”
Uma carta da administração
O primeiro dia da rodagem de “A Fábrica de Nada”, no interior de um edifício no Parque das Nações, Hermínio não vai ter maneira de esquecer nunca – e não apenas por ter sido o início de um projeto a que tinha chegado depois de telefonar para o número que vinha naquele anúncio que encontrou na junta em que a Terratreme pedia operários para um filme. “A empresa em que eu trabalhava abriu insolvência no dia 31 de outubro. No dia 1 de novembro fomos filmar para a Expo, e eu levei a carta da administração e disse-lhes: ‘Olhem, já posso filmar à vontade. Já tenho liberdade total. Não tenho de andar a trocar turnos, nada, porque isto já acabou. Agora, é quando quiserem.’”
Tinha chegado a sua vez naquela história de tragédia coletiva que não era ficção, era real, e que àquela zona de fábricas e de gente a viver delas chegou cedo.
“Lembra-se de uma greve de uns camionistas de Alverca?”, pergunta em alusão a uma mediática concentração de dezenas de camionistas frente ao Campus da Justiça, em Lisboa, em 2011. “Essa empresa, a TNC, pegava com a fábrica onde a gente fez o filme. Eu nessa altura não tinha vida, quem trabalha por turnos perde um pouco a noção das coisas, mas sei que fecharam muitas empresas. Se me pusesse a contar agora pelos dedos, os das mãos não chegariam de certeza.”
No final de “A Fábrica de Nada”, antes de todos os agradecimentos, o filme que é assinado por Pedro Pinho mas que tem como coautores Tiago Hespanha, Luísa Homem e Leonor Noivo é dedicado “a todos os trabalhadores da FATELEVA”, uma fábrica de elevadores, como a do filme, que entre 1975 e 2016 funcionou “numa experiência ímpar de autogestão”. Como outras, aquelas que Hermínio não quer contar pelos dedos, também esta fechou, em 2016, um ano depois de terem terminado a rodagem do filme que levaram – Hermínio também – à Quinzena dos Realizadores em Cannes.
E agora, quê?
Perguntava o operário ao intelectual e perguntamos nós a Hermínio, para quem, mais de dois anos depois do final da rodagem, a vida é pouco diferente do que era naquele dia em que, já em layoff, resolveu telefonar para o número que vinha no tal anúncio, num gesto meio desprendido meio a querer dar voz à indignação. “Agora não se arranja nada.” Ou arranja, mas por metade do valor. “O que achei sempre que a crise vinha fazer era isso. Baixar os salários, o valor do trabalho. Aparecer trabalho, até aparece. O problema é que me pagam ainda menos do que o que recebo do Fundo de Desemprego. Ainda ontem recusei duas idas a entrevistas no Carregado porque pagavam-me menos e ainda tinha de pagar o transporte do meu bolso. Ia perder dinheiro, e aí não vale a pena.” Outras vezes, poucas, é diferente, como no verão passado, em que trabalhou quatro meses numa fábrica de cervejas, contratado através de uma empresa de trabalho temporário em que “já pagavam mais qualquer coisa”. Mas foram quatro meses.
“Agora, já estou mentalizado que não vou ser nunca mais efetivo, mas isso também já não me interessa muito. Isto vai ter de levar uma grande volta qualquer dia. O que o filme tenta é pôr as pessoas a pensar numa forma de isto melhorar.” E a conversa há de voltar sempre ao mesmo. “Ninguém conseguiu ainda encontrar solução.” Nem à esquerda nem à direita. “Se existisse uma solução, já estava a ser aplicada. Isto são tentativas”, sorri, otimista. “Eu acho que há solução, que vai haver solução. Vai ser difícil, até porque muitas vezes não procuramos da forma mais correta. É o que o Zé [Smith Vargas] diz lá: se formos dividir isto entre quem abdica e quem não abdica, não vai haver ninguém a abdicar. Vai haver sempre qualquer coisa de que a gente não quer abdicar. É a sobrevivência.”