Angela Merkel está lançada para garantir o seu quarto mandato consecutivo. Como se explica que a chanceler esteja em vias de se tornar uma das únicas “sobreviventes” políticas da liderança europeia que atravessou os piores anos da crise económica?
Enquanto a Europa e, nomeadamente, os países da Europa do sul foram muito afetados pela crise de 2009, a Alemanha tinha acabado de sair da sua própria crise económica alguns anos antes. No início da década de 2000, o país fora apelidado como o “homem doente da Europa” e tinha uma taxa de desemprego que ultrapassava os 4 milhões de cidadãos. Por isso, de uma perspetiva do eleitorado alemão, a crise da zona euro, apesar de estar interligada com a política económica de Berlim, não afetou diretamente o bem-estar dos alemães: o clima económico e comercial da Alemanha é muito positivo e a taxa de desemprego está bastante baixa, como há muito tempo não acontecia. Isto faz com que a maioria do eleitorado considere que não se justifica uma mudança da liderança política, mas antes a sua confirmação, na figura da chanceler Angela Merkel. Na Europa, apesar da dureza das medidas que os países em crise tiveram de seguir, vimos que a política de resolução da crise, em larga parte impulsionada pela Alemanha, produziu resultados positivos, como se vê no caso de Portugal. Também no domínio da política externa, a chanceler tem conduzido uma política multilateral que a maioria do eleitorado apoiou, como é o caso da resposta da União Europeia à Rússia na crise ucraniana e na anexação russa da Crimeia, ou o do posicionamento da Alemanha face a Donald Trump – cuja imprevisibilidade face à política transatlântica levou Merkel a exortar os europeus a contribuírem mais para a sua própria segurança. É por isso que as sondagens apontam para a sua reeleição, na ordem dos 36 a 38 %, para que continue uma política que, para muitos alemães, tem seguido o caminho certo. A incógnita não é a reeleição de Merkel, mas com qual dos restantes partidos a CDU formará um governo de coligação.
Muito se tem apregoado sobre a necessidade de uma reforma profunda na União Europeia, particularmente após a saída do Reino Unido. O que se pode esperar da dupla Merkel-Emmanuel Macron, relativamente a essa pretensão? E o que poderia ser diferente com Martin Schulz?
Num cenário de Brexit, a dupla Merkel–Macron – “Mercron” – deverá querer aprofundar a integração económica e política, o que pressupõe a revitalização do motor franco-alemão da UE. Apesar de o ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble, se ter manifestado criticamente face à proposta de Macron para a constituição de um ministro das Finanças europeu e de um orçamento comum para a zona euro, Merkel mostrou-se favorável a ambas as propostas, numa entrevista em finais de agosto. Schulz, por seu turno, tem uma posição semelhante, o que, aliás, lhe tem dificultado um pouco a sua campanha, visto que as suas posições e as do seu partido, o SPD, não se distinguem em muitos pontos do partido de Merkel, a CDU. Contudo, caso venha a constituir-se pela terceira vez uma grande coligação entre CDU e SPD, e caso o SPD reivindique para si a pasta das Finanças, podemos esperar uma maior insistência na suavização da política de austeridade face aos países da Europa do sul e numa política de apoio ao investimento. Quanto à questão da mutualização da dívida, à qual a CDU continua oposta, o candidato Schulz também se tem pronunciado de forma vaga. Independentemente de o próximo governo alemão – sob provável liderança de Merkel – se constituir em coligação com o SPD, com os liberais do FDP – que deverão voltar para o Bundestag, depois de uma ausência parlamentar desde 2013 – ou numa coligação inédita com o FDP e os Verdes, o motor franco-alemão já iniciou a sua revitalização. E da perspetiva do papel de liderança da Alemanha, isso é positivo, uma vez que retira a Berlim o ónus de uma liderança unilateral, sujeita a críticas por parte dos restantes países europeus.
Embora a estratégia alemã para a contenção da vaga migratória para a Europa esteja cada vez mais focada no incremento da cooperação e investimento em países como a Líbia, Merkel ainda não abraçou totalmente os planos, de Macron e do próprio FDP alemão, de instalar centros de processamento de pedidos de asilo no norte de África. Estará à espera de se desagrilhoar do SPD para assumir a estratégia? Que outras propostas da chanceler se podem esperar para alterar a capacidade de resposta da UE à crise dos refugiados?
A crise dos refugiados, no verão de 2015, foi um duro teste à liderança política da chanceler, mais do que ao governo de grande coligação, já que Merkel respondeu, talvez pela primeira vez desde que assumiu o poder em 2005, de forma impulsiva e emocional, em vez de forma pragmática e cautelosa, como é seu costume. Passados dois anos, e contra as expetativas, a integração de mais de um milhão de refugiados na sociedade alemã tem decorrido melhor do que o esperado. Mesmo assim, se a Alternativa para a Alemanha (AfD) entrar no Bundestag e alcançar entre 8 e 9 por cento dos votos – ou mais -, o discurso político na Alemanha tenderá a alterar-se e a política para os refugiados será contestada no parlamento por este partido antimigração e eurocético. Por outro lado, e também por culpa deste fator interno, o próximo governo de coligação deverá exercer mais pressão no seio da UE sobre países como a Hungria e a Polónia, que se recusam a aceitar uma distribuição equitativa de pessoas refugiadas, conforme foi decidido pelos restantes Estados-membros. Também aqui, as propostas entre a CDU e o SPD não são muito divergentes: há dias, o ministro do Interior alemão, Thomas de Maizière, da CDU, e Schulz, do SPD, propuseram a aplicação de padrões de asilo unânimes para toda a UE.
As movimentações agressivas russas no leste europeu – anexação da Crimeia, aumento da presença militar no Báltico, etc. -, aliadas ao aparente “desinteresse” da atual administração norte-americana na região, têm promovido o debate sobre a necessidade de criação de um exército europeu, a mando da UE. Que papel se pode esperar da Alemanha de Merkel nesta questão?
Um exército europeu, a constituir-se, não seria uma resposta credível para influenciar a política de Vladimir Putin. É a NATO que torna uma posição europeia face a Moscovo credível, e, no seio dela, a Alemanha é um de quatro países da NATO que, desde o início deste ano, lidera um batalhão de soldados nos países bálticos – nomeadamente na Lituânia – no âmbito da iniciativa de reforço da segurança territorial da Aliança Atlântica. Ao mesmo tempo a Alemanha tem apoiado ativamente o reforço da Política Comum de Segurança e Defesa da UE. E desde o referendo britânico que os ministros da Defesa francês e alemão têm sido ativos na apresentação de propostas como acontece com o Fundo Europeu para a Defesa e com a criação de um centro de comando da UE para o planeamento militar de missões, ambas já aprovadas pelos Estados-membros. Quanto à necessidade de os países europeus contribuírem mais ativamente para a segurança europeia – a CDU comprometeu-se em alcançar os 2% do PIB alemão até 2024, conforme reafirmado na cimeira da NATO, em Varsóvia, no ano passado -, o candidato do SPD, assim como o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sigmar Gabriel – do mesmo partido -, têm-se pronunciado muito criticamente. O que parece provável é que o SPD, a integrar a próxima coligação, não ignorará a constatação de Merkel, do passado dia 28 de maio, sobre o fim da era de confiança entre os países-membros da NATO, numa alusão clara ao problemático encontro de Trump com os seus parceiros europeus da aliança, em Bruxelas, dias antes. Logo, é previsível que nenhum dos partidos da futura coligação governamental escape ao objetivo de um maior protagonismo europeu na política de segurança.
Os dois principais candidatos a chanceler assumem estar de costas voltadas com a atual liderança turca. Que repercussões poderá ter a vitória de um ou de outro nas relações bilaterais, no processo de adesão da Turquia à UE e na convivência entre os países europeus e Ancara no seio da NATO?
A Turquia encontra-se numa fase de viragem política autoritária do presidente Recep Erdogan e de aparente redefinição da sua política externa, que durante décadas foi pró-europeia e pró-aliança atlântica. Inevitavelmente, a relação bilateral entre Berlim e Ancara entrou num período de contínua tensão que tornou a gestão diplomática mais difícil. Merkel defende, desde 2005, uma “parceria privilegiada” entre a UE e a Turquia, em vez da adesão desta como membro de pleno direito. Apesar de o SPD ter apoiado a adesão desde o governo do chanceler Schröder, dificilmente Schulz poderá argumentar neste sentido agora. Por outro lado, a Turquia não deixa de ser um parceiro importante para Berlim e Bruxelas na gestão da questão migratória e dos refugiados, e, por enquanto, as partes envolvidas mantêm o interesse na manutenção do acordo. Por isso, apesar do azedar das relações, Ancara e o Ocidente têm de encontrar um modus vivendi que acomode o papel da Turquia na guerra civil da Síria e na sua relação mais unilateral com a Rússia. Por último, de um ponto de vista interno, a existência de cerca de 3 milhões de cidadãos turcos na Alemanha – 900 mil dos quais com possibilidade de voto – significa que, independentemente da composição do próximo governo alemão, a relação bilateral terá sempre uma importante dimensão doméstica.