Já não estão os 47 graus a que chegaram este verão, sim, 47. Mas a meio de setembro, o termómetro ainda atinge uns consideráveis 30 graus e, por isso, quando o sol está a pique, é raro encontrar alguém fora das casinhas brancas, feitas especificamente para proteger esta gente do calor. «Mas mesmo que viesse a outra hora, não via muito mais do que isto», admite Maria do Céu, que aproveitou uma aberta no seu dia atarefado para vir tomar um café à Augusta.
«Parece que não, mas há muito que fazer», explica, e começa a contar pelos dedos da mão os afazeres desse dia. «Acordei às 6h15 para fazer o pequeno-almoço e almoço para o meu filho e o meu marido, arrumei a casa e ao meio dia almocei. Com esta conversa já são quase duas da tarde, vou para casa, apanho a roupa que está a secar, passo a ferro, faço o jantar para as 19h30 e ‘tá o dia passado».
Estas são as rotinas de quem não tem um dia comandado por toques de entrada ou pelo picar o ponto. Na Aldeia da Serra não há trabalho e, mesmo em Arraiolos, a 12 quilómetros, poucas são as hipóteses para quem se quer manter na terra onde nasceu.
Com 69 anos, Augusta ainda se lembra de uma aldeia de 400 pessoas, onde não faltava animação e, lá está, trabalho. «Havia uma fábrica de massa, uma de tomate, o descasco do arroz, os metalúrgicos. Hoje não há nadinha», explica. E é por isso que esses 400 perderam um zero e, pelas contas feitas por alto pelas duas, não devem passar dos 40. «Veja lá que eu, com 45 anos, devo ser das mais novas», exclama Maria do Céu. As duas riem-se, entre o que de irónico a história tem e o nervosismo de constatar que a média de idades da aldeia já passa os 80 anos.
A aldeia do ida e volta
Para aqui chegar percorrem-se as típicas estradas alentejanas que de tão retas parecem não ter fim. Mesmo antes de virar para Arraiolos, segue-se a indicação da aldeia, numa estrada que se mantém como único ponto de ligação com o resto do mundo. «É a aldeia do ida e volta, como costumo dizer», brinca Augusta. E mesmo essa ida e volta não é para ser feita todos os dias. A junta de freguesia disponibiliza uma carrinha uma vez por semana, para que quem não tenha carro – vimos só dois estacionados na aldeia – possa ir a Arraiolos. Os poucos que vão à escola, têm que ir de táxi. «Já no tempo do meu filho, que tem hoje 28 anos, era assim», conta Maria do Céu.
Apesar destas limitações, não há quem queira sair daqui. «A gente queixa-se mas não me via fora deste cantinho», garante Maria do Céu. Já Augusta, sair não sai, mas vê um fim próximo para o café e mercearia que herdou do sogro. «Já não dá lucro, é mais para me entreter», admite, apoiada num balcão onde expõe uma cesta onde rifa tudo por um euro, para despachar o que está em stock. «Quem viu isto e quem vê agora», lamenta, lembrando os primeiros tempos a trabalhar num café que não dava margem para folgas. «E isto tudo sem luz e com água que íamos buscar em cântaros ao poço». As contas eram feitas à mão, «com parcelas deste tamanho», diz, esticando os dois indicadores de maneira a ocupar uma folha A4. Arrefeciam-se as cervejas em bacias de água e, quando o sol se punha, acendiam-se os candeeiros para as noitadas. «Não vá mais longe», acrescenta, como se se tivesse lembrado de algo de repente, «até o meu filho nasceu à luz de petróleo».
Visita guiada
Como Maria do Céu tem a roupa à espera para ser passada, apanhámos a sua boleia até casa. São poucos metros de rua os que a separam do café de Augusta, mas os suficientes para mostrar os últimos trabalhos da câmara. «Aqui é a casa mortuária e ali no fim da rua a coletividade», aponta. Obra recente? «Uma tem aí uns dez anos e a coletividade já uns vinte». Prova, mais uma vez, de que o tempo aqui é outro.
Pela rua, há tantos cartazes da Festa do Avante como à entrada da Quinta da Atalaia. A câmara de Arraiolos é CDU desde que se lembram. Já Augusta tinha comentado, minutos antes, que mais parecia o Estado Novo. «O Salazar teve lá 40 anos não é? Olhe que Arraiolos é igual. Roda um, sai outro, entra mais um. Mas no fim, são sempre os mesmos». Pelo caminho, guiado por Maria do Céu, há um cartaz da campanha do PSD que destoa neste domínio comunista. «Eles bem tentam…», lança Maria do Céu, baixinho.
As duas não falham o voto, mas são das poucas que fogem ao domínio comunista da região. «Não vejo grande coisa a ser feita por esta zona. Se não há trabalho, como querem que fique cá alguém?», questiona, voltando ao momento em que teve que deixar de lado a profissão de tecer tapetes que puseram a terra no mapa. «A fábrica para onde vendia fechou e eu, a par de mais umas moças da aldeia, deixámos de ter quem os comprasse», conta. É por isso que, atualmente, apesar de muitas saberem bordar, só duas o fazem como profissão.
Uma delas é Mariana que, aos 61 anos, continua a passar pelo menos oito horas por dia sentada no banquinho colorido feito de propósito para ajudar a ter a melhor posição para aguentar o peso dos tapetes. «Este deve levar-me dois meses a fazer», explica, enquanto espeta a agulha no grosso tecido de quase três metros quadrados. Vende-os para uma fábrica sabendo que ao público é vendido ao dobro do que ganha, uma vez que recebe 110 euros por metro quadrado. Feitas as contas, por um trabalho de dois meses, cobra cerca de 300 euros. «Quem quer fazer disto profissão?», questiona, sabendo que a resposta está na lista sem nomes de quem queira aprender esta arte.
Mariana acredita que o fim da sua geração vai marcar o fim dos tapetes de Arraiolos. «E não é por falta de interesse de quem os procura, é sim por falta de mão-de-obra». Ganha-se pouco, é certo, mas para Mariana é suficiente para uma vida que raramente passa as fronteiras da aldeia.
Gente só de vez em quando
Devíamos ter coordenado melhor esta viagem. Visitar uma aldeia alentejana entre as 14h e as 16h é garantia quase certa de que seremos os únicos na rua.
Os poucos sons que se ouvem vêm das novelas da tarde, repetidas vezes sem fim pela TVI, e que servem de embalo a quem não dispensa uma sesta. Mas no meio do silêncio, há uma televisão que soa mais alto e é esse barulho que nos serve de guia até às portas abertas do segundo café da Aldeia da Serra.
Lá dentro, só as proprietárias. Antónia Bandeira arruma uma encomenda na mercearia e Jacinta, no alto dos seus 88 anos, tem direito a um descanso numa das mesas vazias do café.
Este espaço que abastece a aldeia nos dias em que não há transporte para Arraiolos, era do avô de Antónia, foi herdado pela sua mãe e agora, depois de uma vida dedicada aos tapetes, cabe-lhe a si gerir o café que, parece que não a uma terça à tarde, mas é capaz de encher a um fim de semana.
«Ainda no domingo tivemos cá um encontro de carrinhas 4L, daqui a uns dias há uma caminhada. Nesses dias ainda vou tendo uma gentinha», explica. Fora esses eventos especiais, só no verão, quando voltam aqueles que ainda têm casa de família ou que não querem perder as festas da aldeia que, diz quem sabe, são as melhores do concelho, é que a aldeia ganha nova vida.
Ao contrário do irmão, que «abalou para Lisboa», Antónia ficou. «Agarrei-me muito aos meus pais sabe? Mas não me arrependo que tenho uma vida sossegada. Cá vou estando e se calhar é até ao fim», admite. Antónia sabe que já não vai estar cá para ver, mas pensa com angústia no dia em que esta terra não vai ter gente. «Tenho muito medo que isto acabe, mas não vejo solução». Nem mesmo nos panfletos dos vários partidos que por lá vão passando em campanha. «Guardo-os todos que isto de ter uma casa aberta não me deixa tomar partido», admite. Mas tem o seu, que mantém em segredo até ao dia do voto.
E pela música que começa a ficar cada vez mais alta, parece que Antónia está prestes a ter mais um panfleto a juntar à pilha que está em cima da mesa.
«Agora não é tarde, agora não é cedo, agora não é tarde nem é cedo, está na hora». Esta lengalenga é cantada num loop tão bem conseguido que, quase uma semana depois, ainda não saiu da cabeça. O altifalante em cima do carro anuncia que dali a pouco Mariana Mortágua vai estar em Arraiolos, nesta que é a primeira vez que o Bloco tenta a sua sorte na freguesia. Mas é como diz Maria do Céu, «eles bem tentam…».