A antiga Fábrica de Tecidos de Seda, ali na Praça das Amoreiras, está perfeitamente situada para um tipo ir ver o sol sacudir as suas cinzas, trepar a luz como se a Paris do início do século XX ficasse a um passo desta cidade-estaleiro, coberta pelas formigas que já se sabe. E ao alcance deste passo suave como uma fé, fica a possibilidade de ir pôr nos olhos o bom tempo que os dias nos dão à revelia do mundo. O edifício que, desde há três décadas, alberga a Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva, com “raízes firmes de uma casa e o folgo largo de um atelier”, receberá entre hoje e 21 de janeiro de 2018 uma espantosa trupe de convidados.
A exposição “Artes e Letras – Edições da Galeria Jeanne Bucher Jaeger” traz a Lisboa uma notável seleção de “livros de artista” e obras de arte afins, sendo que o factor distintivo passa pela raridade das suas reproduções. São edições históricas, um percurso de quase um século que nos leva ao encontro de alguns dos mais célebres exemplos da troca de atributos entre a literatura e a arte.
O livro é o ponto de partida, e daí a acção irá soltando amarras até que o gesto simples de se virar páginas faça retroceder os limites, derrubando a paisagem habitual. Num percurso que se estende por algumas salas e passagens do museu, o acervo da icónica galeria parisiense espalha as preciosas reproduções e algumas obras originais sobre papel (guache, desenho) de artistas como Max Ernst, Louis Marcoussis, Georges Braque, Picasso, Rouault, Matisse, Alfred Manessier, Roger Bissière, Jean Dubuffet e Maria Helena Vieira da Silva, entre outros.
Contra o gesto perdido da sua génese, e com as máximas cautelas face à repetição e à reprodução, a Jeanne Bucher Jaeger soube combinar o papel de galeria e editora, chamando a si um conjunto de artistas que colaboraram na criação de objectos de arte interessados na participação do leitor, nessa estrutura movente e desdobrável que obriga a contemplação a uma experiência de manejamento.
Se o livro tem resistido bem à sucessão das novas tendências da cultura de consumo, envergonhando os rumores que, de tempos a tempos, dão a sua extinção como provável, se enquanto ‘tecnologia’ o livro vai sendo declarado obsoleto face à multiplicidade de periféricos que se propõem superar o anacronismo da sua experiência – essa que lhe garante, afinal, uma tão fabulosa resiliência – , o certo é que, em nenhum momento como este, o livro terá visto tão malnutrida a sua legítima pretensão de afirmar-se enquanto objecto de arte em si mesmo.
Entre o 8 e o 80 há um horizonte vastíssimo e que exige como nunca que se retome a sua razão expansiva, num momento em que os fenómenos de concentração editorial e as práticas gestionárias condenam o livro a essa exiguidade de caminhos em que o grande imperativo é reduzir ao máximo os custos de produção. Esta exposição não é certamente uma exploração deste campo, mas marca o tal 80 nesse limite do que é possível fazer de forma a puxar o formato do livro nas direcções mais inesperadas.
A galeria que tem em Jeanne Bucher (1872-1946) a sua figura fundadora, na sua dupla vertente de exposição e edição, tem no início da sua actividade – por volta de 1925, quando Bucher tinha já 53 anos de idade – um reflexo claríssimo da fervilhante actividade, tanto literária quanto artística, que marcou o período entre-guerras. Como esclarece Joana Baião no texto que serve de apresentação a esta mostra, foi um contexto “culturalmente marcado pela grande quantidade de artistas franceses e estrangeiros que, à semelhança do que acontecera nos anos de transição do século XIX para o século XX, continuavam a procurar Paris para estudar, trabalhar e impulsionar as suas carreiras”. As raízes alsacianas de Bucher, tanto como um percurso ligado às letras e à edição – sendo de destacar as traduções que realizou de poemas de Rilke, Strindberg ou Dehmel, bem como os trabalhos em várias bibliotecas em Friburgo e em Genebra e a criação, já em Paris, da Librairie étrangère (1922-1926) -, atestam uma sensibilidade face a esse frutuoso trânsito entre diferentes culturas e línguas. “Assim, na sua galeria fez questão de divulgar artistas de diversas origens, vindo a assumir um papel fundamental na promoção de numerosos representantes da denominada Escola de Paris, entre os quais Giacometti, Lipchitz, Kandinsky, Miró, Vieira da Silva, De Staël, Bazaine”, refere Joana Baião.
A galeria que sobreviveria à sua morte promovendo o seu legado, com Jean-François Jaeger, a dar-lhe continuidade a partir de 1947, respeitando sempre esse vínculo entre as artes e as letras. Atenta às movimentações que redefiniriam a visão e os contágios de um campo ao outro, Lisboa tem nesta exposição uma série de exemplos de um grito a várias vozes, inúmeras mãos a cavalo umas das outras, experiências em que é flagrante a inspiração e o desejo de através desse “grito nu subir um degrau da escadaria imensa da alegria”´ (Éluard). Num tempo em que “todos falavam demasiado baixo, falavam e escreviam demasiado baixo” o imperativo era “derrubar os gestos sem luz e os dias impotentes”, e Jeanne Bucher soube ser uma agente cúmplice desse modo de instigar a sedição. Não reduzindo a sua atividade a uma ação passiva de divulgação e distribuição comercial das obras de arte, Joana Baião sublinha o papel que assumiu enquanto “impulsionadora da interação entre artistas, poetas e escritores, integrando-se deste modo no grupo de galeristas-editores que faziam dos seus espaços comerciais lugares de encontro de artistas das artes e das letras, estimulando um ambiente que favorecia a conceção de projetos em parceria, muitas vezes materializados em exposições ou publicações conjuntas”.
Esta exposição reveste-se de um particular simbolismo hoje, não apenas por celebrar a memória de Jean Bucher mas por recuperar e expor diante dos nossos olhos a obra que marcou o início da relação com a maior pintora portuguesa do século XX. Alguns dos guaches originais feitos por Vieira da Silva para o livro “Kô et Kô, les deux esquimaux” (1933) – história infantil escrita por Pierre Guéguen e ilustrada pela pintora -, bem como um dos exemplares desta e de outra das edições que fez para aquela galeria durante a direcção de Bucher integram a mostra. E surgem na intersecção com a restante obra da artista portuguesa, fazendo a conexão com os seis quadros que o Estado português comprou este mês, por 5,5 milhões de euros, à colecção Jorge de Brito.
Se depois da morte de Arpad Szenes, em 1985, o desejo de Vieira da Silva de que se criasse um Centro de Estudos e Investigação dedicado à obra de ambos acabou por realizar-se três anos mais tarde, e se então não faltaram responsáveis políticos interessados em associar-se à criação da Fundação e do museu, tendo vários aparecido para se fazerem fotografar ao lado da pintora, foram precisas três décadas para que um governo tivesse finalmente a coragem de adquirir um núcleo fundamental da obra de Vieira da Silva. Até aqui, a Fundação dependia da generosidade de Jorge de Brito e, depois da sua morte em 2006, dos herdeiros, das falências de alguns bancos, e do que outras colecções podiam emprestar ao museu enquanto este não iniciava a sua própria colecção.