Velenje. Fomos adotadas na Eslovénia

A hospitalidade portuguesa, principalmente a do norte do país, onde fui criada, já me tinha habituado a gente de coração quente. Mas nada até hoje se assemelhou à forma como fomos adotadas no norte da Eslovénia

Ao terceiro dia de viagem, depois de duas boas noites em Ljubljana, fizemo-nos à estrada mais uma vez. Apanhámos boleia com um casal esloveno que não falava inglês e não fazemos ideia de como correu a viagem porque a fizemos toda a dormir, mais uma vez. Passadas cerca de duas horas estávamos a pagar os quatro euros pela boleia enquanto tentava entrar em contacto com a Tina.

Não acredito, por muito que já me tenha esforçado, que as coisas aconteçam por puro acaso ou coincidência. Com todo o historial de coisas extraordinárias pelas quais tenho passado, com as encruzilhadas, os sarilhos em que me meto e as pessoas inacreditáveis que me aparecem pelo caminho, com todas as lições e chapadas nesta cara de miúda meio parva, meio feliz, parece-me improvável que toda esta sorte chegue até mim só porque sim, só porque calhou. Prefiro acreditar que cada tropeção, cada vez que esfolo os joelhos, cada vez que sou ajudada por pessoas lindas é porque tenho algo a aprender com isso. Não me revejo na conceção de um deus, de uma história já escrita, mas quero acreditar que a energia das coisas é enorme e que nos faz atrair uns aos outros. 


Quando, em junho, viajei até Forlì, em Itália, para um encontro sobre jornalismo e comunicação, tive um desses tropeções “kármicos”. O grupo de portugueses que ali se formou era de uma unicidade inexplicável e o primeiro contacto que tivemos com o grupo de eslovenos indicava que aquilo não ia ser só mais uma pseudoamizade de circunstância. Foi lá que conheci a força da Tina, a calma da Anna, a timidez do Lukas, a genialidade do Theo, a doçura do Matija e a loucura do Marcus. Foram dias de partilha e, quando nos despedimos, prometemos que não tardaria até nos vermos de novo. Explicaram-me o quão fundamental era que os visitasse, já que viviam em Velenje (lê-se Valenia), cidade em que encontraria vários tipos de conteúdos para a minha escrita. 


Agora, ao fazermos esta viagem, todos estranhavam quando lhes dizia que de Ljubljana íamos para Velenje. Nunca tive paciência para turismo de massas, gosto pouco de confusões e já tenho tido provas de que alguns dos locais que vêm nos guias turísticos são sobrevalorizados. Vai daí que me pareceu perfeito seguir os conselhos deles e sugeri à Diana que os visitássemos.

A Tina veio ter connosco ao McDonald’s. Nenhuma de nós entrava nesta cadeia de restaurantes há meses, mas calhou termos fome e estar ali à mão. O cheiro a batatas fritas tornou-se estranhamente familiar e, de repente, não sabíamos bem se estávamos em Velenje, no meio das montanhas, ou no Rossio. Descobrimos que, na Eslovénia, o molho de salsa para as batatas não existe, mas há umas dez variedades que lhe tentam fazer jus.

Quando a Tina chegou demos um enorme abraço que matou saudades, mas ao mesmo tempo fez parecer que não nos víamos desde o dia anterior. Ela tem 28 anos mas é muito “old school”, não gosta de tecnologias e evita as redes sociais, por isso, durante estes meses, o mais normal seria termos perdido ligação, o que não aconteceu de todo. Seguimos no carrinho cor de laranja dela até à casa que descreveu como um cantinho modesto. Quem nos dera a nós algum dia conseguirmos um cantinho modesto daqueles para viver. Eu e a Di vivemos em Lisboa, onde se paga um ordenado por cada quarto alugado. Eles, por volta de 200 euros, têm um apartamento confortável, equipado e com direito à presença da Fiona, a boxer mais querida com quem já partilhei espaço.

Depois de nos termos acomodado, levou-nos a almoçar num restaurante no lago Škalsko, do qual deixarei mais detalhes na reportagem sobre esta cidade utópica pela qual acabámos por apaixonar-nos. No restaurante, tudo o que era peixe veio diretamente das canas de pesca dos vários pescadores que se estendem pelas margens e foi aí, no meio de uma cidade perdida do norte da Eslovénia, que ouvimos gritarem-nos “surpresa!!!” no meio da cidade. E assim, sem saberem o que dizer, dois queixos caíram.

O Miguel, com quem partilhamos casa em Lisboa e que andava em viagem pelo centro da Europa e nos bombardeava com localizações diferentes todos os dias na janelinha do messenger, aproveitou uma das que lhes enviámos e apareceu–nos à frente, com um amigo português.

As reações épicas ficaram registadas numa fotografia que nos tirou sem autorização prévia, e juntaram-se a nós sem que contássemos. O jantar ficará para sempre nas memórias dos nossos corações e estômagos.

O namorado da Tina, Josip, não só se revelou um coração de ouro como também se mostrou um cozinheiro de mão- -cheia e preparou-nos uma refeição maravilhosa, não só para nós os quatro mas para os restantes membros do grupo que conheci em Forlì e que se juntaram para o convívio. Éramos quatro nortenhos de Portugal em completa confraternização com seis nortenhos da Eslovénia.

Explicaram-nos o quão importante é para eles acolher pessoas nas suas casas, a felicidade que lhes traz o proporcionar uma boa estadia a amigos que lá passam. Pela comida, vinho, cerveja, licores e sobremesas, pelas conversas e discussões sobre a origem do mundo e a capacidade da natureza de unir seres humanos, não restava qualquer dúvida.

Partilharam-se músicas de cá e de lá, projetaram-se tours de amigos músicos para o futuro e à nossa frente estava não só uma rapariga aleatória do norte da Eslovénia. À nossa frente estava a compressão de vários seres num só. Jornalista. Amiga. Mãe. Guerreira. Uma menina. A mulher e todo o seu espírito feminino.
Enquanto pensava na minha sorte e me sentia orgulhosa por poder apresentar pessoas tão especiais e juntá-las no mesmo contexto, eu olhava-a com admiração.

Senti o conforto da família que escolhemos ao longo da vida, sem ligações de sangue ou genética à mistura. Até que me apanhou a olhar para ela e me disse: “Sabes que mais, Balolas? Sinto que podiam ficar cá para sempre, e assim poderia adotar-vos como minhas.”

Partida: