Hugh Hefner. Mudar os costumes do mundo em pijama de seda

Criou uma das mais icónicas revistas do século xx, a “Playboy”. Ajudou a mudar costumes, contribuiu para a libertação sexual do pós- -guerra, afirmou direitos numa publicação com mulheres nuas que era muito mais do que isso. Tinha literatura e grandes entrevistas. Hefner viveu uma vida longa da qual se despediu agora, aos 91 anos

“Faleceu pacificamente” aos 91 anos, “de causas naturais, na sua casa, a Mansão Playboy, rodeado pelos seus entes queridos.” O comunicado da Playboy Enterprises é omisso quanto ao que Hugh Hefner, o criador do império da “Playboy”, tinha vestido na altura da morte, embora não seja difícil de calcular que tenha optado por um dos célebres pijamas de seda que foram a sua imagem de marca durante mais de 60 anos.

O homem que fez progredir mentalidades e ajudou a mudar a visão dos americanos sobre o sexo criou uma revista que se tornou um marco na cultura popular do mundo no séc. xx. E tudo começou por causa de cinco dólares, os cinco dólares que a revista “Esquire” não lhe quis dar de aumento para ele continuar a escrever para lá.

Por causa desses cinco dólares em falta e com os mil dólares que a mãe lhe emprestou criou Hefner um império, um império de sonhos, de fantasia, despindo mulheres mais terra a terra (não queria mulheres inalcançáveis, mas a vizinha do lado) com sofisticação – bons fotógrafos, bons cenários. Nos Estados Unidos do pós-guerra, do começo da Guerra Fria, das perseguições do senador Joseph McCarthy, a “Playboy” fez mais pela liberalização dos costumes, pela libertação da mulher, pela naturalidade do sexo e da sexualidade do que muitos programas governamentais.

A revista chegou antes do tempo em muitas questões, de raça, de religião, de sexo e sexualidade. Na primeira grande entrevista, publicada em 1962, teve o génio do jazz Miles Davis a falar de racismo e preconceito. Joyce Carol Oates, Gabriel García Márquez, Norman Mailer, uma miríade de escritores e jornalistas escreveram nas suas páginas textos influentes, referências jornalísticas. Gore Vidal escreveu um ensaio sobre “Sex is Politics”, isto é, o sexo é política. Arthur C. Clarke admitiu na entrevista de 1986 ter tido uma “experiência bissexual”.

A revista libertou mentalidades ao mesmo tempo que Hefner se dedicava a viver uma vida de sonho kitsch que incluía mansões sempre em festa, uma enormidade de playmates pelo braço e uma eterna imagem de marca – um roupão sobre um pijama, tudo de seda, como se a sua vida fosse um eterno jogo sexual no motel de espelhos que se tornou a sua casa.

Vivia como se tudo fosse uma eterna festa ou, pelo menos, vendia essa ideia. Sempre com um cachimbo pendurado dos lábios que lhe dava um ar de Arthur Miller ao lado de Marilyn Monroe – o intelectual de braço dado com as pin- -ups. (À medida que os anos foram avançando, perdeu o cachimbo e a sua trupe de coelhinhas meio despidas começaram a dar-lhe mais uma aura de avozinho a passear as netas.) O seu mundo era o da fantasia dos homens jovens da América, que depois exportou para todo o mundo. A revista vende hoje mais exemplares fora dos EUA – nas várias versões em diferentes línguas.

Tal como a célebre desculpa dos leitores apanhados com um exemplar – “eu só leio por causa das entrevistas” –, a “Playboy” sempre foi uma publicação de quem os americanos adoraram dizer mal sem nunca deixar de se sentirem fascinados pelo conteúdo das suas páginas. Nelas, o sexo merecia atenção como parte imprescindível da natureza humana, mas não era o único tema.

Hefner costumava atribuir parte do sucesso da revista ao facto de Marilyn Monroe figurar no primeiro número. Os dois ficaram amigos próximos e, em 1992, o magnata comprou a cripta ao lado do túmulo da atriz no cemitério de Los Angeles por 75 mil dólares. Vai agora descansar os ossos ao lado de Marilyn Monroe, o que não deve ser um mau lugar para se ficar por toda a eternidade.

 

O coelho (com smoking) mais famoso do universo

A cabeça de um coelho com laço tornou-se um dos mais reconhecidos logótipos do planeta. Se Hefner foi imprescindível na sua criação, o design é de Art Paul, que o desenhou para o segundo número da revista. Desde aí, permanece inalterável – tal como um homem vestido com smoking é intemporal, também o coelhinho da Playboy. “O coelho, o coelhinho, tem um significado sexual na América; e escolhi-o porque é um animal estimulante, tímido, vivaz, saltitão – sexy”, explicava Hefner. “A rapariga parece-se com um coelho. Alegre, brincalhona. Vejam a rapariga que tornámos popular: a Playmate do Mês. Nunca é sofisticada nem uma rapariga inalcançável. É uma rapariga jovem, saudável, simples – a vizinha do lado.”

 

Despir playmates para vestir estrelas

As playmates são as estrelas de cada número da revista, desde sempre. A mais famosa de todas não podia ser outra senão Marilyn Monroe, que figurou no primeiro número, em 1953. No entanto, ninguém representa mais o espírito “Playboy” que Pamela Anderson, capa da revista em 12 ocasiões diferentes – para a primeira, em fevereiro de 1990, descolorou o cabelo e aumentou os seios. Em quase 65 anos, muitas mulheres foram despidas pela revista, incluindo Jayne Mansfield, Betty Page (a mais famosa das pin-ups), Shannon Tweed (que ainda hoje é mulher do baixista dos Kiss, Gene Simmons), Kelly Monaco, Dorothy Stratten (assassinada pelo marido aos 20 anos), Anna Nicole Smith, Jenny McCarthy (que foi mulher de Jim Carrey).

 

A mansão das festas permanentes

Todos os anos, em agosto, a mansão da “Playboy” abre as portas a uma festa de modelos em lingerie e celebridades, e este ano não deixou de o fazer, mesmo já não pertencendo às Playboy Enterprises (vendida a Daren Metropoulos por 100 milhões de dólares em 2016, o mesmo que tinha comprado a mansão vizinha, também da “Playboy”, em 2009) e sem a presença de Hugh Hefner. A mansão de Los Angeles (das festas permanentes, das coelhinhas com pouca roupa, das piscinas com decorações excêntricas) foi comprada em 1971 por 1,1 milhões de dólares (tem 22 quartos), mas estava em decadência, a precisar de obras e de renovação da decoração de interiores. Nem sequer foi a primeira mansão, a original está em Chicago – sede da empresa até 2012.

 

Capas para mais tarde recordar (e colecionar)

Marilyn Monroe figurou na primeira capa da revista, em dezembro de 1953, da qual foram vendidas 51 mil cópias. Desde então, várias capas se tornaram icónicas, como a de Darine Stern que, em outubro de 1971, foi a primeira mulher negra a figurar sozinha na capa da revista. Mas há Barbra Streisand, Dolly Parton, Farrah Fawcett, Bo Derek, Joan Baez, Madonna, Pamela Anderson, Kim Basinger, Goldie Hawn, Brooke Shields, Anna Nicole Smith, Naomi Campbell, Cindy Crawford, Sharon Stone, Drew Barrymore, Charlize Theron, Kim Kardashian, até Marge Simpson conseguiu chegar à capa. O biquíni de junho de 1962, Donna Michelle a fazer em pose a silhueta do coelhinho em maio de 1964 ou Lorna Hopper com uma gravata em abril de 1969 são outras capas famosas.

 

Eu só leio por causa das entrevistas

Que muita gente tenha usado ao longo dos anos a deixa de que só lia a revista por causa das entrevistas, não quer dizer que fosse verdade a justificação, embora não fosse mentira quanto às entrevistas. Ao longo dos anos, a revista publicou importantes entrevistas com figuras conhecidas. E tudo começou em 1962 com Miles Davis (na foto), com o músico a falar sobre racismo e preconceitos. E houve mais, uma impressionante entrevista a Martin Luther King: “Sinto que tenho de aceitar a tarefa de ajudar a fazer desta nação e do mundo um melhor lugar para viver”. Stanley Kubrick, Bob Dylan, Steve Jobs, Vladimir Nabokov, Frank Sinatra, John Lennon e Yoko Ono, Ingmar Bergman, Fidel Castro, entre muitos outros, foram entrevistados pela “Playboy”.

 

Sem as mulheres nuas era uma “revista literária”

Hefner confessou uma vez a um grupo de Playmates: “Sem vocês, eu seria o editor de uma revista literária.” E não estava a exagerar: para lá das imagens glamorosas de mulheres nuas ou seminuas, as páginas da “Playboy” abriram-se desde os seus primórdios ao melhor da ficção americana. Para isso muito contribuiu Auguste Comte Spectorsky, nova-iorquino nascido em Paris, que Hefner contratou logo no advento da publicação. Como escreveu Taylor Joy Mitchell, “mesmo que Hefner e Spectorsky nem sempre concordassem nas suas escolhas de vida, ambos estavam empenhados em produzir uma publicação viril de alta cultura”. Gabriel García Márquez, Haruki Murakami, Norman Mailer (na foto), John Steinbeck, Margaret Atwood, Ray Bradbury escreveram na “Playboy”.