200 pijamas de seda, em 20 cores diferentes, não é muito para um homem que, se era forçado a dormir como o resto de nós, meros mortais, o fazia para retemperar as forças que lhe exigia uma vida de sonho. Em 1966, este ímpar protagonista da revolução sexual daquela década, falava dessa sua proeza: «Grande parte da minha vida tem sido o sonho adolescente de uma vida adulta. Se ainda fosses um miúdo, um pouco como o Peter Pan, e pudesses ter a vida perfeita que quisesses ter, foi essa a vida que inventei para mim próprio». E agora que, aos 91 anos, o «profeta do hedonismo pop» – como a revista Time se lhe refere – chega ao fim da sua vida, e entra pelo sono definitivo, pacificamente e de causas naturais, a melhor e mais justa das piadas que se fez na hora da sua morte limitava-se a asseverar que certamente ninguém se lembrará de dizer que «partiu para um sítio melhor».
Pondo por momentos de lado a hipótese de estarem a contar com ele no inferno, é fácil imaginar o paraíso a ser forçado a obras de expansão para ter condições de acolher Hefner pela eternidade fora. Na celebração do seu fundador, a marca que criou recordava outra das suas frases memoráveis: «A vida é curta demais para andarmos a viver o sonho de outra pessoa». Mas o percurso do filho pródigo do sonho americano deixa claro que não bastam as lendas da cama para se ascender ao estatuto de mito. Nos EUA, também a luxúria passa pelo sexo só para chegar ao dinheiro. Muito dinheiro.
Hugh Hefner foi o libertino que ditou as regras do jogo porque nunca perdeu de vista que o lucro se tornou a moral dos tempos modernos. Foi o seu faro empresarial que lhe permitiu erguer um império financeiro enquanto distraía a América com a promessa de uma «nova maturidade e honestidade moral em que o corpo, a mente e a alma do Homem convivem em harmonia e não em conflito». Balelas, ditos por vezes espirituosos de um homem que soube encarnar as fantasias excitadas pela máquina publicitária. Um magnata cujo golpe de génio foi ter vestido a pele de um idealista: «A principal força civilizadora no mundo não é a religião, é o sexo».
Se, em dezembro 1953, estava longe de antecipar o impacto transformador e duradouro que a revista viria a ter na cultura popular, não há dúvida de que Hefner soube jogar as cartas certas, e pôr em campo o ato de rebeldia que desenhou uma fronteira entre duas gerações. Filho de um casal de professores que seguiam a fé metodista, criado no Nebraska segundo os valores puritanos daquela religião, aos 27 anos, depois de uma passagem pelo Exército no decorrer da II Guerra Mundial e de ter estudado arte e psicologia na universidade, Hefner sabia que a receita conservadora e moralista que passa por infantilizar toda uma nação impedindo-a de falar abertamente sobre sexo estava a pedir que o tapete lhe fosse puxado debaixo dos pés. Mas mais do que a vontade de contrariar a repressão, viu a oportunidade de fazer muito dinheiro.
Depois da Esquire (revista para a qual trabalhava como revisor) lhe ter recusado um aumento salarial de cinco dólares, pagou 500 dólares pelos direitos de publicação da foto de Marilyn Monroe nua, tirada antes de se ter tornado a mulher cuja nudez terá sido o motivo de mais sonhos masculinos, e investiu tudo o que até então tinha poupado – cerca de 600 dólares -, tendo ainda contado com mil dólares oferecidos pela mãe – que deixou claro que não o fez por entusiasmo pelo projeto, mas porque acreditava no filho -, e com oito mil dólares de quase meia centena de investidores.
O primeiro número foi montado na sua cozinha. Porque não tinha a certeza se haveria um segundo, a data foi omitida na capa. Mas os 51 mil exemplares que mandou imprimir esgotaram de imediato, e essa primeira edição mantém-se até hoje um dos mais desejados itens indispensáveis para colecionadores de todo o mundo. O ano novo viu a revista atingir vendas de 200 mil exemplares, e na década seguinte a Playboy atingiu o clímax, tornando-se a revista masculina mais vendida, chegando aos sete milhões de cópias por mês.
Entretanto, e tendo chegado ao mercado numa altura em que os médicos norte-americanos recusavam a pílula a mulheres solteiras, a Playboy marcou uma posição clara a favor da liberalização dos costumes e fez muito por expor a beatice, estupidez e infelicidade daqueles que buscavam diabolizar o sexo e o corpo da mulher. Hefner bateu-se contra a proibição do aborto e, em muitos aspetos, a Playboy foi importante na libertação da mulher, apoiando uma agenda progressista em questões de direitos civis.
A revista publicou a primeira entrevista de Miles Davis, em 1962, com o génio do jazz a falar de racismo e preconceito. Outros entrevistados foram Fidel Castro, Bertrand Russell, Malcolm X, Jean-Paul Sartre, Frank Sinatra, John Lennon. Naquelas páginas a nudez das ‘coelhinhas’ surgia a par com o génio literário de autores como Ray Bradbury, Vladimir Nabokov, Ian Fleming, Jack Kerouac, Saul Bellow, John Updike ou Kurt Vonnegut. Isto lembra-nos que Hefner foi muito mais do que um oportunista, que fez muito pelo gosto, pelo glamour e pela sofisticação da cultura norte-americana. Certa vez, chegou mesmo a confessar a um grupo de Playmates (as estrelas de cada número da revista): «Sem vocês, eu seria o editor de uma revista literária». No editorial do primeiro número descrevia assim a sua visão: «Gostamos de misturar cocktails com um ou dois canapés, de pôr a tocar música ambiente no gira-discos e convidar uma conhecida para uma conversa tranquila sobre Picasso, Nietzsche, jazz, sexo».
Quanto às mulheres, a nudez não as rebaixava, garantia Hefner, o bom gosto devia salvá-las do perigo da sua objetificação. Ainda que este ponto seja debatível, depois surgiram os exclusivos clubes Playboy, levando mundo fora a fantasia fermentada no segredo das célebres festas da mansão de Hefner, e o buraco da fechadura virou-se para o anfitrião. Além do óbvio, do modo como se fazia rodear das coelhinhas como o Tio Patinhas banhando-se na sua piscina de moedas de ouro, o homem que se gabou de ter mantido relações sexuais com cerca de duas mil mulheres, acabou por gozar da impunidade da sua caricatura, e nem o relato de Holly Madison, uma das suas preferidas, parece ter manchado o seu prestígio. Acontece que, por muito que longe que tenha levado o seu sonho, segundo o relato de Madison a vida na mansão Playboy chegava a ser um pesadelo, uma prisão gerida por um homem controlador e emocionalmente abusador.