A noite horribilis de Passos Coelho
A derrota do PSD era esperada. Sendo previsível um mau resultado no país, o PSD só tinha uma hipótese de não sair moribundo destas autárquicas: salvar a honra em Lisboa. E, para isso, teria de se agarrar ao CDS para uma candidatura comum. E o candidato deveria ser Assunção Cristas – por ser mulher, por ser uma ‘máquina eleitoral’ (como se tinha visto nas eleições nos Açores) e por ter uma imagem positiva.
Dir-se-á que, depois do jogo, é fácil fazer prognósticos.
Ora, não é assim. Tudo isto foi escrito por mim neste espaço muito antes de Santana Lopes ‘desistir’ da corrida e de Assunção Cristas anunciar a candidatura. ‘Demonstrei’ que o PSD tinha obrigatoriamente de se coligar com o CDS na capital e que o candidato deveria ser Cristas (que, a meu ver, seria mesmo melhor do que Santana Lopes, já que era uma novidade, enquanto Santana era um remake).
Mas o orgulho partidário falou mais alto. Os inimigos de Passos Coelho envenenaram o ambiente, dizendo que seria humilhante um grande partido como o PSD pôr-se debaixo das saias de um partido mais pequeno. E Passos foi na conversa. Apostou num candidato próprio, que se viu logo que não chegaria a lado nenhum. Até o facto de ser também mulher foi um erro: dava a ideia de ir competir com Cristas para o segundo lugar e não com Medina para a presidência. Enfim, um desastre!
Se o PSD e o CDS se tivessem coligado em Lisboa, poderiam ter feito uma ótima campanha – e ultrapassariam largamente os 30%, o que seria um resultado digno. Passos e Cristas poderiam celebrar juntos o ‘feito’ na noite de domingo. Pelo contrário, em vez de Lisboa contribuir para salvar o PSD, contribuiu para o enterrar ainda mais. Porque a verdade é que, a nível nacional, o PSD nem teve uma percentagem tão humilhante como isso (28%). Mas o 3.º lugar em Lisboa, muito longe do CDS, ditou a humilhação.
Diga-se que, na noite das eleições, Passos Coelho foi igual a si próprio – reconhecendo sem subterfúgios a «grande vitória» do PS e «o pior resultado de sempre do PSD». Poucos o diriam com esta crueza – a mesma, aliás, com que assumiu a austeridade, falando claro aos portugueses e não procurando dourar a pílula nem fingir o que não era.
Escrevi nesta coluna que Passos Coelho resistiria previsivelmente às autárquicas, a menos que um resultado péssimo o fizesse renunciar à liderança. Ora, foi este resultado que aconteceu – embora as previsões no início da noite tenham pintado um quadro mais negro do que aquele que viria a verificar-se, criando um ambiente depressivo que marcou muito o serão eleitoral.
Perante isto, Passos Coelho não tinha condições para continuar. Nem condições políticas, nem condições anímicas, nem outras. Mesmo a legitimidade que lhe dava a vitória nas últimas legislativas, perdeu-a agora.
A propósito, não gostei de ver Marques Mendes e Manuela Ferreira Leite no papel de ‘comentadores’. Eles não são comentadores, são políticos. E não lhes fica nada bem irem para a televisão enterrar o líder do seu próprio partido em noite de eleições, vestindo uma pele que não é a deles.
Mendes e Ferreira Leite têm sido nos últimos anos dois dos grandes aliados da ‘geringonça’, sempre prontos a dizer que ‘a culpa é do Passos’, seja o que for que aconteça. Ora, Passos Coelho já não é chefe do Governo. O ataque constante de que é alvo – por parte de barões do PSD, de todo o PS e ainda do PCP e do BE – não faz qualquer sentido.
Só que, nestas eleições, a culpa foi mesmo… do Passos – pois é o líder do partido, e o líder é o principal responsável pelas estratégias eleitorais, sendo ou não candidato. Por isso, fez bem em anunciar a retirada. A História reabilitará a sua ação no Governo, como reabilitou Ernâni Lopes.
O afundamento do PCP
Além do adeus a Passos, a outra grande consequência destas eleições foi o enterro da ‘geringonça’, ditado pelo fracasso do PCP.
Dizia-se que o PS nas sondagens estava a crescer à custa da direita e não dos partidos da coligação. Ora, ficou claro que o PS cresceu à custa da esquerda. O PCP nem teve um resultado muito mau a nível nacional (9,5%) mas perdeu 10 câmaras em 34! Ora, o poder local – a par dos sindicatos – era um dos seus grandes bastiões. Câmaras como o Barreiro ou Almada eram praças-fortes do PCP, que passaram para outras mãos. A ‘geringonça’ erodiu brutalmente o poder local comunista.
Mas o que terá ditado esta desgraça?
Desde o 25 de Abril, a grande luta do PCP não era com a direita: a grande luta do PCP era com o PS, pela hegemonia da esquerda. Recorde-se a guerra entre Cunhal e Soares. Ora, com a ‘geringonça’, a luta contra o PS perdeu-se. A direção do Partido Comunista reconheceu o papel liderante do Partido Socialista e até apoia o seu Governo. E isto matou um dos leit motivs da luta de muitos comunistas. Muitos eleitores deixaram de ter razões para votar no PCP. Esquerda por esquerda, votaram no partido maior, o PS.
O PCP quis fazer uma experiência de ‘partido de apoio ao poder’ e deu-se mal. Aliás, os comunistas eram os que mostravam mais incómodo na ‘geringonça’, com Jerónimo de Sousa sempre a justificar-se. E tinha razão, pelos vistos. Nestas condições, o PCP vai querer voltar o mais depressa possível à sua condição de ‘partido de resistência’.
Resta saber como irá provocar a rutura, para não ser penalizado. Para já, logo na terça-feira Jerónimo de Sousa ensaiou um discurso alternativo, atacando o Governo pela sua submissão ao capital monopolista e à política europeia. «Não peçam ao PCP para ser peninha no chapéu [do Governo]», disparou. E a ação sindical vai aumentar de intensidade.
Tal como Passos Coelho, também seria natural Jerónimo afastar-se da liderança, mas as coisas no PCP são diferentes. Pela primeira vez, porém, os comunistas reconheceram abertamente uma derrota. Era difícil não o fazerem, depois de perderem um terço das câmaras. Mas é um ‘momento histórico’.
A humilhação do BE
Ao contrário do PCP, o Bloco de Esquerda vai querer a continuidade da ‘geringonça’, porque é o único modo de ter visibilidade. Catarina Martins aparece todos os dias na TV, e fala de alto, porquê? Pelos seus lindos olhos? Pela sua altura? Não! Porque o BE influencia o Governo.
O BE teve um resultado nacional dececionante (3,3%) e não ganhou uma única câmara. Argumenta que teve mais votos do que em 2013; só que em 2013 o BE tinha uma liderança bicéfala e estava moribundo, esperando-se a todo o momento a sua morte. O regresso a esses tempos é, pois, um grande passo atrás. Foi patético ver Catarina Martins anunciar em direto para todo o país que tinha acabado de ganhar as eleições… numa freguesia! E embandeirou em arco com a eleição de um vereador na capital, mostrando as suas semelhanças com as rádios locais: tem voz em Lisboa e mais nada. No resto do país não existe.
Mas até por isso vai querer agarrar-se ao poder. É a única forma de Catarina continuar a ser uma ‘figura nacional’. Assim, vai fazer tudo o que o PS quiser e engolir tudo o que o PS lhe der a comer. Não tem qualquer poder negocial.
Resta saber se António Costa pretenderá continuar de braço-dado com Catarina. Eu apostaria que não. Quando a ‘geringonça’ acabar, se o PS fizesse um acordo com o BE, isso seria visto como uma provocação ao PCP – e os socialistas não estarão para aí virados. Até porque o PCP ainda tem poder ‘de facto’. E porque o PS vai ter de fazer algumas reformas que tem adiado exatamente por causa do acordo com as esquerdas.
A vitória esmagadora de Costa
António Costa teve uma grande vitória, como se esperava. Que apagou a derrota nas legislativas, até porque foi contra o mesmo adversário que aí o tinha vencido: Pedro Passos Coelho.
É curioso que, até domingo, nenhum socialista reconhecia frontalmente que o PS fora derrotado pelo PSD nas legislativas; mas hoje já diz abertamente: «Perdemos umas eleições, mas ganhámos estas; a partir de agora, temos toda a legitimidade para governar».
Portanto, Costa conquistou a legitimidade que não tinha, superiorizando-se ao rival Passos Coelho. Até porque não vale a pena ninguém iludir-se: esta vitória autárquica do PS deve-se em grande parte ao sucesso do Governo. Em política, o que parece é. E a ideia que se tem – e que António Costa repete como uma cassete – é que o Governo devolveu rendimentos às famílias, a economia vai ter este ano «o maior crescimento do século», o défice está a cair e o desemprego também.
Ora, o PSD não soube contrariar esta ‘narrativa’. Vive-se um tempo semelhante ao de Guterres. Vive-se em festa, há um ambiente de euforia, como na altura da Expo 98. O consumo aumenta, o preço das casas sobe, os depósitos caem para o valor mais baixo de sempre, a dívida pública continua a aumentar, a despesa pública também, os bancos regressam ao crédito fácil, o desequilíbrio das contas externas acentua-se.
Mas o que prevalece nos media é o discurso positivo – e isso refletiu-se nestas eleições.
A vitória do PS, de tão expressiva, terá sido mesmo ‘grande demais’ – pondo em causa o equilíbrio da ‘geringonça’. O próximo passo, agora, é a maioria absoluta nas legislativas. E a partir daí não será preciso ‘geringonça’ para nada.
O que aconteceu com Cavaco à direita, nos anos 80 e 90, poderá acontecer com Costa à esquerda. Cavaco engoliu o CDS; Costa pode engolir o PCP e o BE.
O sucesso de Cristas
Aproveitando bem os erros e as hesitações do PSD, Assunção Cristas conseguiu um brilhante segundo lugar em Lisboa – que a fez cantar vitória e disfarçou um resultado modesto a nível nacional (6,6%), três pontos abaixo do PCP.
Mas, com a performance na capital, Assunção reforçou a sua posição pessoal no ranking dos políticos, consolidou a sua liderança no CDS e tornou-se o rosto da oposição em Lisboa, conseguindo quase três vezes mais votos do que Portas há 16 anos. Como atrás foi dito, Cristas confirmou-se como uma máquina em campanha: enérgica, convicta, por vezes exuberante, sendo uma lufada de ar fresco num ambiente muito poluído.
Passos Coelho deveria ter percebido logo que ela iria ficar à frente de Teresa Leal Coelho – que era o único risco que o PSD não poderia correr, sendo certo que não ganharia a Medina. Aliás, o modo como os resultados em Lisboa podem ‘mascarar’ um fraco resultado nacional – transformando um líder derrotado num líder quase vitorioso – deve ser motivo de reflexão para o PSD. Ou melhor: devia ter sido antes…
Uma palavra para os independentes, que já constituem o 4.º maior partido nacional, com 6,8% de votos e 17 câmaras. E tem vindo sempre a crescer. Julgo que hoje compensa ser independente.
E um conselho à Universidade Católica: não faça mais sondagens sobre as autárquicas. Desacreditam-na. O empate entre Rui Moreira e Manuel Pizarro, que a Católica antecipou no Porto, fez lembrar a sondagem que deu João Soares a vencer Santana Lopes em Lisboa com 10 pontos de vantagem – naquelas eleições que Santana ganhou.
E essa sondagem foi fatal para a Euroexpansão.