“Não dispare! Sou Che Guevara e valho mais vivo que morto.” Foi com estas palavras, proferidas no dia 8 de outubro de 1967 e dirigidas ao capitão Gary Prado, nas matas dos arredores de La Higuera, na Bolívia, que um ferido e exausto Ernesto Guevara de la Serna refreou a intenção dos soldados do exército boliviano de porem imediatamente fim à vida do segundo maior rosto da revolução cubana, a seguir a Fidel Castro, e figura cimeira da vaga dos movimentos de libertação de índole marxista-socialista que brotaram na América Latina e em África nos anos 50 e 60 do século passado.
O apelo de “El Comandante” surtiu efeito, é certo, mas apenas lhe ofereceu umas horas extra de vida. Juntamente com Simeón “Willy” Cuba Sarabia – um dos poucos sobreviventes da coluna de 47 homens que desde o dia 31 do mês anterior batia em retirada, esfaimada e maltratada, pelas montanhas da região de Ñancahuazú, em Santa Cruz –, foi detido pelas forças bolivianas, financiadas e treinadas pela CIA, e escoltado para uma pequena escola em La Higuera. Por volta do meio-dia do dia seguinte foi abatido com duas rajadas de metralhadora pelo sargento Mario Terán, que recebera ordens superiores para “ver-se livre dele”, 11 meses depois de El Che ter aterrado em território boliviano, disfarçado de cinquentenário, para ajudar a derrubar o regime de René Barrientos Ortuño, e 39 anos volvidos sobre o seu próprio nascimento, em Rosário, Argentina, a 14 de junho de 1928.
Imagens do cadáver do guerrilheiro com os olhos esbugalhados, rodeado de militares e exibido com um troféu em Vallegrande, correram o mundo, naquela que foi a sua derradeira aparição física nos 30 anos seguintes – os seus restos mortais, entretanto transladados para Santa Clara, em Cuba, apenas foram descobertos em 1997 numa vala comum escavada nos arredores do aeródromo de Vallegrande e hoje transformada em memorial. Mas lançaram a primeira pedra para a imortalização de El Che e consequente ascensão à categoria de mártir, e até de figura divina. Como na pequena localidade de La Higuera, hoje transformada em local de culto e atração turística. “Dizem que era parecido com Cristo, que faz milagres. As pessoas ainda hoje rezam a São Ernesto”, conta Susana Osinaga, de 87 anos de idade, uma das enfermeiras que ajudaram a limpar o sangue e a lama do corpo do morto, antes de exposto.
Amado e odiado por milhões em todo o mundo, Che Guevara era, em vida, um símbolo da resistência anti-imperialista e de uma visão muito própria do socialismo, apontada à justiça social e à libertação dos povos e lograda através da ação violenta contra os seus opositores. Foi esta última postura, aliás, que alimentou maior controvérsia em volta da sua figura, particularmente pela apologia da legitimidade da luta armada e das execuções, em nome da causa marxista. “A sua sinceridade levou-o a deixar o testemunho escrito das suas crueldades”, disse um dia o escritor peruano Álvaro Vargas Llosa.
Com a sua morte, a ação e pensamento de El Che alcançaram traços de verdadeira mitologia e serviram de sustentação teórica quer para os diversos movimentos libertários de esquerda que continuaram a florescer pela América Latina nas décadas seguintes, quer para as plataformas de extrema-esquerda nascidas no meio intelectual europeu e impulsionadas pelo Maio de 1968 francês, embevecidas com a figura carismática, idealista e romântica do guerrilheiro.
“El Che representa os anos românticos da revolução, carregados de uma boa dose de utopia. Não é de estranhar que continue a ser uma figura popular e, em determinadas ocasiões, lendária”, explica Michael Shifter, presidente da ONG Inter-American Dialogue, ao diário colombiano “El Espectador”. “Olhando em retrospetiva, conseguimos detetar uma certa ingenuidade, um idealismo quase grosseiro”, acrescenta ao “Guardian” John Lee Anderson, autor da biografia “Che Guevara: A Revolutionary Life (1997)”.
Além do legado político e intelectual, a figura de Che Guevara protagonizou ainda um dos mais lucrativos fenómenos comerciais de sempre, que muito contribuiu para adensar o seu misticismo. Muito desse sucesso deve-se à fotografia tirada pelo cubano Alberto Korda, em 1960, que imortalizou o rosto sério e altivo do guerrilheiro, tornando-o uma imagem de culto. Ainda hoje é reproduzida em t-shirts, cartazes, murais, canecas, porta-chaves, bonés e milhões de outros objetos por todo o mundo, para além de figurar, parede sim parede não, nas ruas e edifícios da ilha cubana.
Juan Martín Guevara, hoje com 74 anos, entende que o irmão representa algo de mais sólido que o idealismo, a utopia libertária ou a mera jogada de marketing. Nomeadamente no que toca ao continente americano, a quem Ernesto declarou amor eterno e vaticinou em 1953, numa carta enviada à mãe, um destino partilhado com a sua própria existência: “A América será o teatro das minhas aventuras e de um caráter mais importante do que havia pensado. Creio ter finalmente ter conseguido compreendê-la e sinto-me americano, um caráter distintivo de qualquer outro povo na terra.” Numa entrevista à AFP, Juan Martín diz que “El Che ofereceu consciência ao marxismo, que sempre interpretou como o estudo de uma realidade social viva”, e acredita que “se não tivesse sido morto em 1967, na Bolívia, a América Latina seria hoje livre, soberana, independente e socialista”. “Se tivesse permanecido vivo, teria triunfado”, garante.
Sendo manifestamente impossível comprovar, hoje, a suposição de Juan Martín, não deixa, no entanto, de haver uma certa precisão no seu discurso. Para o bem ou para o mal, a América Latina de hoje não é aquela com a qual sonhou e por que morreu “El Comandante”, e nem sequer é a mesma de algumas décadas atrás. Em Cuba já não mora Fidel Castro – morreu a 25 de novembro do ano passado –, e o seu irmão e sucessor, Raúl, iniciou com Barack Obama um caminho de reconciliação com o inimigo norte-americano de sempre, mesmo que refreada pela nova administração Trump. Na Venezuela, onde Hugo Chávez – também falecido – procurou edificar num Estado a visão socialista de Che Guevara, Nicolás Maduro lidera hoje um cenário de quase guerra civil onde há fome, pobreza, elevados índices de criminalidade e uma experiência quase diária de manifestações de protesto nas ruas. E na Bolívia, um dos países mais pobres da América do Sul, Evo Morales empenha-se em manter vivo o ideal socialista – hoje liderará uma série de homenagens ao Che, sob o lema do “relançamento da luta anti-imperialista –, mas a crise venezuelana e as oscilações no preço do petróleo têm-lhe causado dissabores políticos sucessivos.
Ao esmorecimento do espírito da Revolução Cubana nestes países soma-se uma série de vitórias eleitorais de governos e presidentes de direita um pouco por todo o continente sul-americano, como são os casos da Argentina, do Brasil, da Colômbia, do Paraguai ou do Peru. Michelle Bachelet (Chile), Lenin Moreno (Equador) e Tabaré Vázquez (Uruguai) são, juntamente com Morales e Maduro, os representantes da esquerda nas cadeiras de topo da América do Sul.
Por outro lado, um dos principais legados de Che Guevara, a luta de guerrilha, é hoje uma sombra do que foi. Desde logo na Colômbia, onde as FARC – Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – puseram recentemente fim a mais de 50 anos de luta armada e se transformaram em partido político. Caminho semelhante foi trilhado pelo movimento zapatista mexicano, que em agosto deste ano largou as armas e abraçou um projeto político. E no Peru, o Sendero Luminoso corre o risco de desaparecer. Como desapareceram nas últimas décadas dezenas de movimentos de libertação marxistas na América do Sul e Central, como os Tupamaros uruguaios ou as Forças Populares de Libertação Farabundo Martí, de El Salvador.
Não obstante, em La Higuera são hoje esperadas mais de 10 mil pessoas para homenagear a vida de um homem de carne e osso, por ali conhecido como “santo da Revolução” e sobre quem um outro biógrafo, Pacho O’Donnell, escreveu que não é difícil alguém “apaixonar–se em demasia”. É essa paixão que, 50 anos volvidos sobre o seu assassinato, continua a fazer de Che Guevara um verdadeiro fenómeno de admiração, inspiração e fascínio, um pouco por todo o mundo e, claro, com impacto especial na “sua” América Latina. Mesmo que esta seja, hoje, uma sombra da América do Che.