O congresso da Frelimo, o partido no poder em Moçambique desde a independência, culminou na semana passada com a renovação de parte da comissão política e o anúncio que se esperava do presidente moçambicano, Filipe Nyusi, de que irá recandidatar-se ao cargo nas eleições de 2019. A reunião política magna do partido antecipou uma semana em que se falou da paz, tendo em conta que quarta-feira se assinalou o 25.o aniversário da assinatura do Acordo Geral de Paz que pôs fim à guerra civil de 16 anos no país. Embora se assinale um quarto de século desse acordo, o país continua sem estar pacificado, tal como o ex-presidente Armando Guebuza salientou esta semana, citado pela Lusa: “Temos de ter a paz efetiva, essa ainda falta.” Depois de meses de conflito, Moçambique vive desde maio uma trégua por tempo indeterminado, depois de o presidente Nyusi e o líder do principal partido da oposição, a Renamo, terem iniciado contactos que se têm estabelecido à margem das negociações entre o governo e a Renamo sobre a descentralização do Estado, a despartidarização das forças de segurança e o desarmamento do braço político da Renamo. Elísio Macamo, professor de Estudos Africanos da Universidade de Basileia, é próximo da Frelimo. Embora seja um observador crítico da forma como o partido se gere internamente e gere o país, confessa- -se admirador do ex-presidente Armando Guebuza e mostra-se muito crítico quanto ao papel das instituições internacionais, como o Banco Mundial e o FMI, em Moçambique.
O que pensa do anúncio do presidente Filipe Nyusi de que irá recandidatar-se ao cargo em 2019?
Estava previsto que isso fosse confirmado durante o congresso. Cumpriu- -se, portanto, apenas uma formalidade. A questão é que a escolha do candidato para as presidenciais na Frelimo não obedece necessariamente ao critério de quem tem mais hipóteses de ganhar. Tem mais a ver com o respeito por hierarquias internas e compromissos históricos tácitos. Felizmente, enquanto houver o tipo de oposição que há em Moçambique e enquanto a Frelimo mantiver o papel dominante que tem no Estado e na sociedade, esse critério não vai necessariamente prejudicar a Frelimo. Vai chegar o dia em que o candidato será apurado através duma luta interna para saber quem tem melhor visão para o partido e quem consegue reunir maior número de apoiantes para essa visão. Não é o caso, por enquanto.
Qual é o balanço que faz do congresso da Frelimo?
Não faço um balanço positivo. Pareceu–me um congresso pobre de ideias, de visão estratégica e de entendimento dos desafios que o partido e o país enfrentam. O lema adotado, “unidade, paz e desenvolvimento”, pareceu-me bastante inócuo. O congresso foi a celebração da complacência e da convicção de que, por enquanto, nenhuma força pode fazer frente à Frelimo. Houve muita unanimidade, que foi interpretada erroneamente como “coesão”, houve pouca reflexão crítica em favor de manifestações de lealdade e vários gestos simbólicos sem muito conteúdo programático. Participar num campeonato sem adversários à altura não é bom. Fragiliza-nos, ao mesmo tempo que pensamos que as nossas vitórias são resultado duma supremacia natural.
O que pensa das novas caras eleitas para a comissão política da Frelimo? Representam uma mudança? Ou é apenas uma questão de cumprir estatutos e renovar 40% a cada congresso?
Como é que você vai saber o que as novas caras representam sem saber o que as pessoas pensam? Sem cultura de debate e discordância é difícil saber porque fulano de tal foi escolhido e não outro. Você não sabe o que cada uma daquelas pessoas pensa, que ideia tem do país e dos desafios. Você só conhece as pessoas pelo seu perfil histórico e biográfico, pelos lugares por onde passaram, e você põe-se a imaginar o que essas pessoas possam representar. Aquilo é um jogo de espelhos de difícil compreensão.
Dhlakama disse, em entrevista à Voz da América, que “a paz veio para ficar”. Acredita que é uma mensagem sincera?
Sim, é uma mensagem sincera se você tiver o mesmo entendimento que ele tem das palavras. “Vir para ficar”, pelo menos pela experiência, significa “enquanto não surgir outro problema” ou “enquanto eu estiver contente com o arranjo”. É verdade que nunca se pode falar de paz duradoira mas, em Moçambique, uma paz melhor do que a que temos agora ou tivemos nos últimos 20 anos depende de várias coisas. Depende, primeiro, dum compromisso mais sério da Frelimo com a despartidarização do Estado e, segundo, da transformação da Renamo num partido político, algo que só vai acontecer quando Dhlakama não mais estiver entre nós. O problema, porém, é que sem Dhlakama dificilmente haverá Renamo. Aquilo é um castelo de cartas que vai se desmoronar assim que não houver líder. Tragicamente, sem uma Renamo forte corremos o risco de voltarmos à situação dum país nas mãos duma Frelimo complacente e arrogante. Estamos mal. É por isso que alguns de nós insistimos, em vão, numa “solução” para a crise política e militar que passe por uma espécie de conferência nacional com o envolvimento de todas as forças vivas da sociedade. A Frelimo não quer isso. Prefere acomodar a Renamo ignorando inclusivamente o MDM.
O líder da Renamo também voltou a reiterar que quer um acordo para o enquadramento dos seus homens nas Forças Armadas, algo que já levou ao aumento da tensão antes. Acha que a Frelimo está disposta a aceitar esse enquadramento? Poderá haver outra vez problemas nas negociações?
Duas coisas: a Frelimo vai fazer tudo o que for necessário para acomodar a Renamo sem prescindir da sua prerrogativa de representar todo o povo moçambicano. Se isso implica comprar a aquiescência da Renamo, vai fazer isso. O problema, naturalmente, é saber onde vai conseguir o dinheiro para satisfazer essas pretensões, mas é para isso que há doadores no mundo… O líder da Renamo, por sua vez, está no centro duma rede neopatrimonial que precisa de ser constantemente alimentada. Qualquer desculpa serve para fazer chantagem sobre a Frelimo.
O presidente Nyusi disse que o seu governo está “a fazer tudo o que está ao nosso alcance para garantir a manutenção desta paz”. Acha que é verdade? Poderiam fazer mais?
É verdade mas, mais uma vez, tudo isso depende do significado conferido às palavras. Fazer tudo significa acomodar a Renamo sem mexer nas prerrogativas da Frelimo, que é constantemente confundida com o país. O presidente tem-se desdobrado em esforços de negociação, algo louvável, não deixa ninguém ver as cartas. Ninguém sabe a que preço essa paz está a ser negociada, e nem ele nem o seu partido têm a coragem de verificar junto do povo que os elegeu se é um preço que esse povo gostaria de pagar. Poderiam fazer muito mais alargando o debate a mais gente, isto é, partidos, organizações da sociedade civil, etc. A paz diz respeito a todos nós, logo, quanto maior for a representação dos interesses presentes na sociedade na mesa das negociações, melhor ainda. Assim, como as coisas estão a ser feitas, dão muito poder negocial à Renamo e colocam o presidente numa posição bastante frágil. É sintomático que quem comunica as decisões e os passos a seguir é sempre o líder da Renamo, nunca o presidente. Não me parece que seja por prudência ou astúcia diplomática. É porque não sabe o que dizer ao seu partido e às pessoas que o elegeram. As coisas são colocadas a um nível bastante baixo – paz ou guerra – para que a única reação das pessoas seja apenas “paz”. Eu acho que, nas negociações de paz a guerra tem de ser uma opção ou um resultado.
A Unidade de Inteligência da “Economist” publicou recentemente uma nota sobre a constitucionalidade da dívida secreta em que diz que o governo e o parlamento tiveram maior preocupação com a defesa dos dirigentes da Frelimo do que com a credibilidade das instituições.
Olha, essa é uma conclusão imbecil, para mim, porque nos obriga a pressupor que a defesa dos dirigentes da Frelimo seja incompatível com a credibilidade das instituições. Sei que, para muitos, este é o caso. Para mim, não. O governo ofereceu garantias que se revelaram inconstitucionais. O governo não é um bando de criminosos. Recebeu o mandato do povo para agir em seu nome. Isso pressupõe que assuma riscos e tome decisões que podem ser erradas. Para que as instituições moçambicanas continuem credíveis é importante que o Estado moçambicano assuma responsabilidade pelos erros cometidos pelo governo. Isso não implica que os membros do governo não sejam responsabilizados criminalmente pela violação da lei. Honestamente, não sei se essa instituição sabe do que fala. O Sporting de Lisboa não pode rejeitar uma derrota com base no argumento segundo o qual o treinador que ele próprio escolheu teria tomado decisões quanto à nomeação da equipa para o jogo que violem os princípios do clube. Ele pode punir o treinador internamente, mas tem de assumir os erros. O sistema político representativo funciona assim.
Moçambique tarda em recuperar da crise da dívida secreta. Acha que o governo moçambicano tinha noção do impacto que o “cozinhar” dos números teria na sua imagem internacional?
Não se pode dizer que tarda em recuperar por causa da imagem internacional. Sem imagem internacional, não teria sido possível contrair as dívidas. O problema na nossa abordagem deste assunto é partirmos do princípio de que a principal motivação por detrás das dívidas tenha sido a famosa corrupção. Não necessariamente! Houve, de certeza, todo um contexto económico e político que levou certas pessoas a acreditarem honestamente na ideia de que se tratava dum bom negócio. O problema, contudo – e para além dum contexto interno de húbris que levou o anterior governo a pensar que fosse mais poderoso do que realmente era –, é que essa decisão teve de ser tomada dentro dum contexto em que existem no país burocratas internacionais que têm o poder de sancionar boa ou má política. Há nas hostes políticas moçambicanas a ideia de que esses burocratas não querem necessariamente o bem do país, pelo que certas decisões têm de ser tomadas à sua revelia. Quanto mais hostis esses burocratas forem a uma certa ideia, mais convencidos ficam os políticos de que a ideia é realmente boa para o país. Há, portanto, toda uma economia política que remete a ação governativa para a clandestinidade, com todas as consequências que daí advêm: intransparência, logo, corrupção, e impossibilidade de discutir os méritos duma ideia. O auxílio ao de-senvolvimento é tão culpado desta situação quanto o governo anterior.
A defesa dos dirigentes da Frelimo de qualquer possível acusação de crime contribuirá ainda mais para a imagem negativa de Moçambique?
Que imagem negativa? Não me parece que haja imagem negativa. Há apenas ação da burocracia internacional para se ilibar das suas próprias responsabilidades. Acha mesmo que o FMI, o Banco Mundial e os doadores não sabiam o que estava a acontecer? O governo de Moçambique pode comprar barcos em França sem que Hollande e Lagarde saibam? Por favor! A questão para mim, neste momento, é que tipo de concessões económicas é que os doadores querem de Moçambique. Obtidas essas coisas, vão-se marimbar para o que quer que seja feito com as pessoas implicadas. Eu sou suspeito para dizer o que vou dizer agora porque sou simpatizante confesso do anterior presidente: seria importante que essas pessoas fossem protegidas de qualquer acusação de crime porque, a acontecer, não vai ter nenhum impacto no sistema político. Vai ser apenas uma caça às bruxas e um ajuste de contas dos doadores com pessoas que ousaram chamar a si a responsabilidade por pensar o país. Sei que sou a única pessoa no mundo que pensa assim. Não acusar criminalmente, porém, não significa deixar as coisas como estão. Vai ser necessário que o país identifique mecanismos para se acautelar contra este tipo de coisas. É preciso impedir que o excesso de zelo leve as pessoas a tratarem a governação como uma espécie de roleta.
O governo está interessado em captar investimento estrangeiro, mas os únicos que parecem interessados são aqueles que investem no setor do gás. Poderemos ter um país com grandes investimentos que não se refletem no dia-a-dia das populações?
Já temos. Essa é a nossa sina. Agora, falta-nos também imaginação. Temos muitas dificuldades em pensar o país para além dos discursos normativos da economia e da indústria do desenvolvimento. E a herança do autoritarismo ainda está presente. Sabe, em Moçambique, nós temos um presidente rodeado dum governo e assessores que ainda acredita que governar é andar a fazer visitas a ministérios para “se inteirar da situação”. Não parece fazer a distinção entre intervenção política e técnica. Não parece ser sensível à possibilidade de a persistência de erros técnicos se dever à ausência duma intervenção política clara e consequente. Gerir uma empresa pública é coisa de gestor; criar as condições para que a gestão seja bem-sucedida é coisa de político. Mas, no nosso país, as coisas parecem ser diferentes. É presidente, logo, entende de tudo, pode imediatamente diagnosticar um problema e encontrar uma solução. Como é que, com este tipo de postura, se pode ter mais imaginação? Por outro lado, há uma grande insensibilidade em relação ao sofrimento do outro. Nas vésperas do xi Congresso da Frelimo há manifestações dos militantes do partido para “saudar” o congresso. Uma dessas manifestações foi em Maputo, com desfile de motorizadas e carros que terminou na praia com comeretes e beberetes. Há tanto insulto numa ação como essa a toda a gente que, em Moçambique, não se pode permitir o luxo de comer fora do orçamento normal. É ostentação insensata. Porque não “saudar” o congresso com ações de limpeza na cidade, como a Frelimo já fez em tempos idos? Esse gesto teria um significado mais profundo.
A reconciliação entre Frelimo e Renamo poderá ajudar a fazer interessar mais investidores?
Essa reconciliação não devia ter como objetivo atrair investidores. Devia ter como objetivo produzir um sistema político e uma postura política que inspirem maior confiança aos moçambicanos. O desafio político é esse. Os investidores virão, com ou sem reconciliação entre a Frelimo e a Renamo. Do que o país precisa é de emancipação do messianismo destas duas forças políticas.
Como vê o processo político em Moçambique?
Com preocupação. O país está refém de forças políticas que se consideram maiores do que a soma de todas as forças sociais do país. O princípio por detrás da negociação da paz em Moçambique – uma paz negociada nos bastidores e à revelia dos moçambicanos – é a acomodação da Renamo. Não vejo como esse tipo de paz possa ser sustentável. Não seria a primeira vez que se chegaria a um acordo que depois seria violado. O país precisa, em minha opinião, duma paz que envolva todas as forças políticas, assim como a sociedade civil organizada. A força negocial do governo está no reconhecimento da necessidade de inclusão de mais atores, não em arranjos secretos. Mas quando alguém diz isto é considerado inimigo da paz.
É possível culpar algum dos lados pela crise política?
Sim, é. O principal culpado, para mim, é a Renamo, que mantém o país refém da sua própria inépcia política. Em mais de 20 anos de paz, ainda não conseguiu afirmar-se como partido político. Nunca foi capaz de desenvolver um programa político que pudesse acomodar aqueles que gostariam de ver mudanças genuínas no país. A sua agenda está focalizada na partilha do bolo estatal. O segundo culpado é a comunidade internacional, que não foi consequente. Ao declarar as eleições livres e justas, devia ter sido consequente na sua atitude em relação à Renamo. Mas não foi. Começou imediatamente a encorajar o discurso da negociação – porquê? Não sei. O terceiro culpado é a própria Frelimo, que não consegue libertar-se da ideia de que o país possa estar em más mãos se não forem as suas. É isto que leva à partidarização do Estado justamente reclamada pela Renamo, mas também à intransparência. O quarto culpado somos nós, os moçambicanos, que nos contentamos com tudo desde que os beligerantes nos deixem em paz. As pessoas querem paz a qualquer preço; logo, temos uma paz má.
O que falta fazer em termos de aprofundamento da democracia em Moçambique?
A democracia está a ser aprofundada todos os dias. É um processo. Não vai ser da noite para o dia. Há, contudo, problemas. O primeiro problema, idêntico ao problema angolano, é o messianismo político, algo que afeta quem está no poder, mas também quem está na oposição. O segundo problema é a existência de organizações da sociedade civil cuja lógica de reprodução consiste na repetição ad nauseam do jargão da indústria do desenvolvimento como forma de vender os problemas sociais e políticos do país aos doadores. O problema disso é a trivialização do político, pois problemas políticos ficam problemas técnicos e subverte-se a agenda política nacional. O discurso anticorrupção faz parte dessa lógica. O terceiro problema é a nossa incapacidade geral de pensar os problemas que a convivência democrática nos coloca a partir de princípios fundadores, e argumentar a partir deles. Por exemplo, quando reclamamos o crime pensamos logo na necessidade de a polícia ser implacável, não no princípio de presunção de inocência. Quando pensamos no ativismo contra a corrupção, ignoramos a importância de respeitar a dignidade das pessoas, corremos logo para tudo o que nos permite sobressair como combatentes contra a corrupção. Há mais problemas, mas creio que esses são os principais. Têm a ver com um problema geral de qualidade do debate público – possivelmente, o maior desafio que a democracia enfrenta em Moçambique. Democracia é deliberação, só que deliberação sem o mínimo respeito pelas regras de debate pode ser coisa complicada.