Crescemos num Portugal seguro, um país de clima invejável, rodeadas de pessoas boas. Em Portugal, qualquer um que junte uns trocos, tem liberdade de voar para onde quiser.
Seja de avião, à boleia, de autocarro ou de comboio, seja de mota ou a pé, de bicicleta ou de carro, os portugueses viajam e, salvo raras excepções, ninguém nos quer mal, nos manda parar em fronteiras porque nascemos no canto errado, não há sentença pela nossa origem. Até hoje, o mais perto de resposta agressiva que recebi por ser portuguesa foi um grito com o nome do Ronaldo, que se seguiu de um sorriso estonteante. Será no Kosovo que vamos ouvir pela primeira vez relatos de gente da nossa idade, nascidos em 1992 e que por serem cidadãos de um país não reconhecido, lhes é negada a possibilidade de ver e visitar outros mundos.
Nos preparativos da viagem, já se sabia que haveria um ponto delicado ali no meio dos Balcãs, que iria exigir de nós bastante mais do que contávamos. Olhávamos para o mapa e a sensação era de uma névoa, um cinzento típico do desconhecido. Se queremos ir ao Kosovo, temos de estar preparados para o que ele tem para nos dar e todos nós, nascidos na década de 90, crescemos com expressões na nossa língua que automaticamente nos indicavam o pior do que por lá se poderia encontrar.
Kosovo foi sempre equivalente a tragédia, confusão, mais anárquico que o próprio Texas, “vai para ali um Kosovo” e o preconceito nasce em nós sem nos perguntarmos bem, quando pequenos, sobre o significado das coisas.
O Kosovo é sempre “muito complicado”, até para os especialistas, os diplomatas, os que tratam dos jogos de xadrez da geopolítica, assim nos dizia mais tarde um norte-americano, marido de uma diplomata a trabalhar com as Nações Unidas em Pristina, capital do Kosovo.
Durante esta viagem que começou a 19 de setembro, sempre que tocámos no assunto “Kosovo” ou se suspirava, ou se bufava, ou nos faziam sinal para falar baixo. “Ninguém fala disso aqui, nós nem podemos lá entrar”, diziam-nos na Bósnia e Herzegovina. Se era ou não assim tão grave, não percebemos bem. A verdade é que toda gente se recusava a informar-nos sobre como lá chegar. Na internet a informação era residual. Nas ruas ouvíamos constantes “não sabemos de nada”.
Em Mostar, o nosso anfitrião disse-nos que o melhor sítio para passar a fronteira pela Bósnia era por Novi Pazar, área muçulmana da Bósnia e Herzegovina: “Pela Sérvia é impossível, eles recusam-se a aceitar a existência deles como um país independente”. Seguimos a pista que nos diziam para irmos até à estação de autocarros de Sarajevo e por lá procurámos um que nos levasse até Novi Pazar. Quando chegámos ao autocarro, íamos a pousar as malas quando um senhor, que não o condutor, nos sussurrou: Pristina?
Afinal o assunto estava ao nível de segredos aos ouvidos. O Kosovo é uma nação recente e ainda existem muitos países que não lhe reconhecem a independência da Sérvia conquistada de forma unilateral em 2008, tais como a Rússia, o Brasil, a Espanha e a China que temem movimentos separatistas do género e que este seja considerado um exemplo internacional.
O autocarro não ia cheio como é costume. A maioria das pessoas eram já de idade avançada e ninguém falava inglês. Por dentro, a cor era de um vermelho aveludado, dando uma sensação mística à viagem. No meio da viagem o senhor que nos perguntou sobre o nosso verdadeiro destino começou a vender bilhetes. Quando chegou a nós pediu-nos sete euros. Ainda tínhamos marcos bósnios e, por sorte, lembrei-me que tinha comigo alguns euros guardados. Apesar de não fazer parte da Zona Euro, os habitantes do Kosovo começaram a utiliza-la assim que a Alemanha o fez, ainda em 2002.
Assim que nos disse sete euros houve uma gargalhada geral. Falava-se albanês e percebemos que estavam a rir-se de nós. Pela primeira vez em toda a viagem não sabíamos se estávamos no roteiro previsto ou no autocarro certo, muito menos com as pessoas certas. Ninguém falava inglês, riam-se de nós a comprarmos um bilhete e quem nos garantia que íamos mesmo para Pristina? Restou confiar.
Como a viagem ia ultrapassar as doze horas e era já noite cerrada, acabei por adormecer tão profundamente que não dei conta de pararmos em Novi Pazar. Quando dei conta, tinha uma polícia a pedir-me o passaporte dentro do autocarro.
Estávamos a sair da Bósnia. Lá fora estava um nevoeiro cerrado. Não percebi se era um rio, se era um lago que nos acompanhava. Mas estávamos no meio do nada. Veem-se uns contentores, nitidamente prontos para serem transportados assim que necessário, a servirem de pouso administrativo. Os passaportes voltam a ser recolhidos e agora carimbados. Do outro lado, quem vem de lá para a Bósnia, tapam-se as matrículas dos carros. Estamos oficialmente no Kosovo.
O salário mínimo por aqui é o mais baixo de toda a região, 130 euros para pessoas com menos de 35 anos e 170 para os que são mais velhos. Segundo o Eurostat estes valores não se alteram desde 2011. O contraste é enorme quando comparado a outros países dos Balcãs a ocidente, como a Eslovénia que conta com um salário mínimo de 805 euros, ou a Croácia com 433 euros mensais. Mas o Kosovo não está assim tão desfasado de países como a Albânia cujo salário mínimo é de 155 euros. Apercebemo-nos nos outros países que existem vários mitos sobre a população do Kosovo que, pelo menos ao que vamos conhecer, não correspondem com a realidade. Falam-se em clãs de famílias, em subsídios pós guerra que sustentam o desemprego. Explicam-nos que o ódio instalado nos Balcãs é milenar. E sobre a população albanesa que reclamou o direito ao Kosovo como independente desenha-se a ideia de uma população preguiçosa, limitada, pouco informada. As capitais nunca representam dignamente o que é um país, já que todo o crescimento se costuma concertar por lá. Mas as pessoas que iremos conhecer vieram de fora da cidade, procurar emprego e uma vida mais digna. Quando pergunto, mais tarde, a Drin Halipi de 27 anos, a viver em Pristina e a trabalhar como assistente técnico de uma empresa de telecomunicações sobre estes factos a cara dele é de choque. “É claro que dizem isso sobre nós, sem nunca terem posto cá os pés”, diz-me enquanto fuma um charro. Pergunto-lhe sobre a existência ou não de mitos, sobre a hipótese de propagação de informação falsa e quais seriam os motivos para que tal acontecesse.
“Nós recebemos apoio das nossas famílias que emigraram e enviam-nos dinheiro, mas que eu saiba mais nada”, responde. “Eu trabalho num emprego onde no sou feliz para me sustentar. O desemprego é altíssimo mas os meus amigos que não estudam trabalham todos. As pessoas são loucas. Somos provavelmente as piores criaturas à face da Terra”.