Fala em carne sintética, ovos feitos em laboratório e impressão de comida em 3D com uma naturalidade que nos faz pensar que este futuro está mais próximo do que imaginámos. E por vontade deste visionário da comida, estaria mesmo. Marius Robles está à frente da Reimagine Food, o primeiro centro de inovação alimentar e aceleradora de startups que se comprometam a melhorar o nosso futuro à mesa. No Dia Mundial da Alimentação, esteve em Lisboa para a conferência “O Futuro da Alimentação: Sustentabilidade dos Sistemas num Mundo em Transformação”, durante a qual foram entregues os 'Food & Nutrition Awards', prémios que distinguem a inovação e as boas práticas no âmbito da indústria agroalimentar.
A tecnologia chegou à alimentação. Não acha que demorou muito tempo? A alimentação é algo sagrado?
Mais do que sagrado, é tradição. A nossa relação com a comida é de desfrutar, partilhar, viver, saborear. Se bem que nos últimos anos se tem integrado um novo elemento: a saúde.
Falamos agora de uma nova alimentação?
Estamos numa nova economia da alimentação à qual gosto de chamar eatnomics. É nova porquê? Porque tem atores impensáveis há uns anos.
Como quem?
Startups que trabalham sem limites ou pessoas de outras áreas como o Bill Gates, o Leonardo DiCaprio, o James Cameron ou a Gwyneth Paltrow a falar e a investir no tema.
As preocupações também são outras.
Sim. Há uma maior sensibilidade para o desperdício alimentar, a sustentabilidade, a transparência. Questionamos agora muito mais a comida que comemos. Estamos perante um consumidor que vive uma espécie de infoxicação [termo usado para a relação entre informação e intoxicação] alimentar devido à grande afluência de informação relacionada com alimentação, saúde e nutrição. É a tal ponto que fica sem saber o que é mais benéfico para si. E depois, claro, a tecnologia, que já penetrou em toda a cadeia de valor da alimentação.
Onde se pode ver essa tecnologia tomar forma?
Em quase todo o lado. Na forma como usamos o supermercado online, como traduzimos os rótulos, na hora de reservar mesa num restaurante, na procura de um acompanhamento online que nos ajude a escolher o que comemos. Mas isto é só o início. A nanotecnologia, a bioengenharia e a inteligência vão entrar nos nossos pratos.
E já comemos de forma diferente por causa da tecnologia?
De certa forma, sim. Mas no futuro vamos comer melhor, de forma mais alinhada com o nosso ADN. Estaremos também mais sensíveis à sustentabilidade do planeta e, por isso, vamos começar a procurar o gosto do que vem de origem animal sem que venha realmente de animais. Ou seja, alimentos que vêm de laboratório, e não da terra ou do mar.
Isso é comer melhor?
A tecnologia deve ajudar-nos a comer de forma mais inteligente. Quem nos diz que não vamos acabar por ingerir alimentos com nanorobôs que permitam saber o que fazem com o nosso corpo? Eu até me atrevo a prever que haverá produtos que serão personalizados a 100% para cada um de nós.
Também vamos cozinhar de forma diferente?
Diria que a tecnologia já influencia a nossa forma de cozinhar. Um exemplo: 89% das receitas já são pesquisadas online. No futuro teremos assistentes virtuais que nos guiarão na execução de um prato. Até os nossos frigoríficos irão dizer–nos, com base nos ingredientes que estão no seu interior, o que poderá ser feito com eles. Vão estar conectados com o supermercado para que, através da “uberização” da comida, nos tragam os ingredientes que faltam.
O que motiva as pessoas a envolver a tecnologia na alimentação?
Acho que o motivo principal é o facto de ainda estar tudo por fazer. É um setor com uma carga emocional forte por várias razões: é uma necessidade, todos nós interagimos com alimentos entre uma e oito vezes por dia e estamos gradualmente a aumentar a nossa preocupação com o setor, com medo que acabemos sem alguns dos nossos principais alimentos.
A comida começa agora a ser vista também como um medicamento?
Vamos diferenciar duas coisas: o comer para desfrutar e o nutrir para ter saúde. Podemos continuar a querer cozinhar com criatividade, mas a verdade é que teremos robôs de cozinha que nos garantam que o prato que fazemos tem os nutrientes e as quantidades certas para cada dia, dependendo do humor, da estação do ano ou se vamos correr uma maratona. Vivemos na era da ultrapersonalização.
E o que se segue?
Depois vamos para a fase do teletransporte de alimentos. Os alimentos não serão transportados, mas sim os dados. Poderemos comprar receitas e pratos de chefes ou mesmo das nossas avós para que, em segundos, sejam impressas em nossa casa. A Foodini, por exemplo, uma impressora 3D da startup espanhola Natural Machines, já sintetiza alimentos em pó para recriar comida em poucos segundos. Em casa teremos um catálogo de potenciadores de sabor, autênticos choques sensoriais calculados ao milímetro e alinhados com o nosso ADN.
Já imagino as fotos no Instagram.
Para que tenha uma ideia, hoje em dia existem mais de 240 milhões de fotografias no Instagram com o hashtag #Food. Tem ideia do potencial que teria saber o que está por detrás de cada foto? Já estão a ser feitos grandes progressos nesse campo. A Google, tal como outras empresas, não quer perder a oportunidade de usar a inteligência artificial e o deep learning nesse sentido.
Mas voltando à parte mais séria da questão, a tecnologia pode ajudar a resolver a falta de comida em algumas partes do mundo?
Esta é a pergunta na qual me devia estender mais, mas sobre a qual continuo pouco otimista. A verdade é que a tecnologia estará disponível para levar alimentos a qualquer parte do mundo e para recriar alimentos que tenham os nutrientes necessários para nutrir durante mais tempo. Aliás, hoje em dia, já temos os batidos que substituem a comida.
Mas o problema está na distribuição.
Sim. É por isso que alguns novos empresários estão focados em criar alimentos que não precisem de refrigeração.
Ainda tendo a ver com a sustentabilidade do planeta: o Marius foca muito do seu trabalho nos substitutos da carne. Porquê?
Porque são os únicos que podem substituir a proteína em certos alimentos. A verdade é que estamos na era pós-animal. Sempre houve comida de laboratório, mas aquilo que eu digo é que esses produtos estarão agora disponíveis para o consumidor.
E como chegamos a esta era a que chama pós-animal?
Devido a vários fatores. Desperdiçamos demasiada comida. Além disso, o modelo de produção em fábrica é defeituoso, ineficaz e extremamente nocivo para o ambiente. E depois temos as previsões de que chegaremos rapidamente aos 10 mil milhões de pessoas em todo o mundo, o que nos obriga a cultivar mais 75% para poder alimentar toda a gente. Isso leva à necessidade de introduzir o termo “artificial” e começar a substituir alguns produtos que vinham da terra e do mar.
Mas como se substitui a carne?
Nos últimos 30 anos, a China quadruplicou o consumo de carne e a Espanha duplicou. Números como estes é que levam a um aumento de casos de cancro, diabetes, obesidade e doenças de coração. Mas quando se fala em substituir a carne, é importante separar os dois tipos: carne in vitro e carne sintética. A primeira é aquela que não vem diretamente do corpo de um animal, mas sim de uma cultura de células extraídas do animal. Uma única célula-tronco pode gerar 75 gerações de células, ou seja, milhões de nuggets. Só que, atualmente, o custo de obter a quantidade de carne equivalente a um peru é de 25 mil euros.
Mas este tipo de proteína já está a ser produzida?
Sim, temos startups como a Real Vegan Cheese a fazer queijo feito de leite de vaca sem que seja tirado da vaca. A Clara Foods produz claras de ovo em laboratório, a Mosa Meat faz o primeiro hambúrguer in vitro. E a todas estas junta-se a Modern Meadow, que se prepara para criar carne crua através de uma impressora 3D.
Até tenho medo de perguntar sobre a carne sintética.
É uma imitação de carne, feita de proteína vegetal. Recentemente, o CEO da empresa Impossible Foods, que produz carne de origem vegetal, disse que quer controlar todo o mercado de carne, avaliado em 807 mil milhões de dólares. Ele defende que a carne que produzem usa 75% menos de água, gera menos 87% de gases nocivos e dispensa o uso de hormonas, antibióticos ou sabores artificiais. É tal a revolução que se espera que o mercado que substitui a carne suba 8,4% por ano durante os próximos três anos.
Com um futuro assim, não é difícil imaginar uma cozinha cheia de robôs.
Os robôs assustam-nos porque os imaginamos à nossa imagem e semelhança. Mas já existe, por exemplo, o Amazon Echo ou o Google Home, assistentes virtuais que funcionam por alta voz, ou mesmo os que funcionam para encomendas e entregas online. Mas a verdade é que a China, por exemplo, já tem mais de 2 mil robôs em restaurantes e todos eles são uma peça-chave no que diz respeito à eficácia e ao rendimento.
Faz da comida o seu trabalho. Sempre foi algo presente na sua vida?
Sempre, e com o avançar dos anos ainda mais. Foi crescendo em mim a responsabilidade de alimentar sete mil milhões de pessoas todos os dias. A Reimagine Food é, em parte, fruto disso.
Criou-a para esse efeito?
É o meu instrumento para chegar a esse fim. Estamos altamente comprometidos em melhorar a nossa alimentação e, para isso, achamos que é fundamental antecipar o futuro. Ou seja, analisamos a forma como a tecnologia poderá construir um mundo melhor em todos os cenários que antevemos.
E há limites para a tecnologia usada na alimentação?
Há: a nossa imaginação. Tudo o resto é possível.