1.O discurso de ontem do Presidente da República foi notável. Porventura, terá mesmo sido a alocução presidencial aos portugueses, simultaneamente, mais dura, incisiva – e mais relevante da nossa história democrática. Irrepreensível na forma. Certeiro no conteúdo. Tocante na humanidade.
2.Todos nós, portugueses, devemos um agradecimento ao Presidente Marcelo Rebelo de Sousa pela defesa da autoridade – mais: da respeitabilidade! – do Estado.
Se não fosse o Presidente da República, assistiríamos a uma quebra, muito provavelmente, irrecuperável da confiança entre o Estado português e os cidadãos. Todos, quer sejam militantes do PS, do PSD, do CDS, do PCP, do Bloco de Esquerda ou de qualquer outro partido – a incompetência e a falta de sentido de Estado de António Costa chocaram qualquer cidadão que não seja sectário ou dependente funcionalmente do líder do Primeiro-Ministro.
3.Para nós, o que sucedeu não foi surpresa alguma: António Costa já cometeu actos muito graves, de incompetência atroz, desde que assumiu funções como Primeiro-Ministro.
No entanto, a protecção de que tem gozado – fruto de ter a extrema-esquerda na sua mão, bem como dos seus vastos conhecimentos na comunicação social – levou António Costa a julgar que estaria sempre acima de qualquer fatalidade.
Acima de qualquer incompetência – António Costa já disse mesmo que mais importante do que ser competente, é parecer competente.
Mais importante do que ser um Primeiro-Ministro responsável, é parecer um Primeiro-Ministro responsável. Bastaria controlar a comunicação social para que o evento mais trágico da nossa história democrática não gerasse qualquer desgaste para o Governo.
Sucedesse o que sucedesse, jamais se reclamaria uma exigência mais acentuada da responsabilidade política de António Costa e dos seus ministros. Como nós já aqui escrevemos, António Costa julga-se o “Senhor da República”, à boa maneira totalitária: como outrora “o the king can do no wrong”, hoje “António Costa can do no wrong” – António Costa nunca se engana, nunca pode ser responsabilizado.
Mas engana-se.
Mas tem que ser responsabilizado.
4.Como poderemos ficar surpreendidos com a arrogância de António Costa hoje – quando foi este mesmo António Costa que, após as mortes de Pedrógão Grande, foi de férias para Palma de Maiorca?
Como poderemos ficar chocados com a frieza, a insensibilidade humana de António Costa – quando foi este mesmo António Costa que, após as mortes de Pedrógão Grande, a sua primeira iniciativa foi realizar um “focus group” para testar a sua popularidade e do seu Governo?
Haverá maior insensibilidade humana do que, perante uma tragédia humana sem precedentes em Portugal, o nosso Primeiro-Ministro…pensar, antes de mais, na sua popularidade?
5.Em qualquer país democrático, isto teria sido um escândalo com enormes proporções (e consequências!) políticas: em Portugal, desvalorizou-se tudo.
Os nossos comentadores (alguns ex-líderes do PSD , feitos comentadores em horário nobre) consideraram normal a preocupação do Primeiro-Ministro com a sua popularidade, apesar das dezenas de portugueses dizimados pelas labaredas dos incêndios, que foram progredindo proporcionalmente à incapacidade do Estado para os controlar, resultado da enorme incompetência governamental. Nós não esquecemos.
6. Nós sabemos que há muita gente que tem que reflecti sobre a postura que tem mantido com o Governo de António Costa – traindo os seus deveres para com a comunidade. Espera-se que a complacência com este Governo acabe de vez: quando a comunidade se demite de escrutinar o executivo, como tem sucedido relativamente à geringonça, a sobranceria e a arrogância do Primeiro-Ministro começam a ultrapassar os limites humanamente admissíveis.
7.O autor destas linhas tem conhecimento de que o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa falou com António Costa no passado domingo para exigir uma resposta imediata à tragédia que estava ocorrendo.
António Costa garantiu aí que não abdicaria da Ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa. E terá mesmo avisado Marcelo que o Governo não iria ceder um milímetro no seu plano de acção, não aceitando qualquer condicionamento dos seus poderes constitucionais.
Nesse momento, o Presidente da República percebeu que António Costa iria prolongar o seu discurso de acusação dos portugueses e das próprias vítimas que perderam a vida, prosseguindo o seu estado de negação da evidência (isto é, das responsabilidades do seu Governo na tragédia que vitimou mais de cem portugueses).
E aí Marcelo – hoje, a reserva moral e de autoridade do Estado português – não hesitou: iria defender o Estado, mesmo que isso implicasse não defender o Governo.
Iria provocar um desgaste calculado no Governo – para evitar o desgaste do Estado. O que é coerente com o entendimento de sempre de Marcelo Rebelo de Sousa: os Governos podem cair, mas nunca a República portuguesa.
8.Perante a moção de censura apresentada pelo CDS/PP, o Presidente foi claro: a partir de terça-feira, caso PCP e Bloco de Esquerda segurem António Costa, a responsabilidade pelo que aconteceu e pelo que acontecerá, será exclusivamente deles.
Da maioria política exótica do PS com a extrema-esquerda. Caso dependesse exclusivamente do Presidente da República, o Governo cairia.
9.Aliás, Marcelo Rebelo de Sousa ponderou mesmo a demissão do Governo. O que se percebe e é coerente com o pensamento do constitucionalista e Professor de Direito Marcelo Rebelo de Sousa.
9.1. O que se percebe: Marcelo Rebelo de Sousa sabe melhor do que ninguém que, se este acontecimentos trágicos não justificam a apresentação de uma moção de censura pela oposição, então nada justifica. Então a moção de censura prevista constitucionalmente é uma mera brincadeira política.
9.2.Por outro lado, Marcelo – em exercício abstracto – julga que o regular funcionamento das instituições democráticas foi posto em causa. Mais grave: António Costa e o seu Governo colocaram em causa o regular funcionamento das instituições do Estado. É o regular funcionamento do Estado – e não só da democracia – que foi posto em causa por António Costa.
Se tudo isto não passasse de um caso prático disponibilizado aos seus alunos, na Faculdade de Direito de Lisboa, Marcelo Rebelo de Sousa pronunciar-se-ia pela admissibilidade do Presidente da República demitir o Governo perante o que aconteceu em Portugal nos últimos dias (somando aos acontecimentos do Verão transacto).
Efectivamente, o Professor de Direito Marcelo Rebelo de Sousa escreveu, em 2000, em anotação ao artigo 195.º, n.º2 da Constituição, o seguinte:
“ Parece dever entender-se – numa visão cuidadosamente restritiva – que constituem pressupostos do exercício do poder presidencial de demissão a existência de comportamentos (acções ou omissões) governamentais susceptíveis de criar ou deixar manter uma impossibilidade de funcionamento normal dos órgãos de soberania ou outro órgãos do poder político democrático (actuação de incidência intra-poder político), bem como a existência de condutas do Governo susceptíveis de criar ou deixar manter uma crise em valores essenciais do regime democrático, que, por seu turno, se projectem naquela impossibilidade (actuação de incidência extra-poder político). (…) Exemplos do segundo tipo seriam condutas revelando incapacidade para travar grave crise de ordem pública…” in Constituição da República Portuguesa Comentada Lex Edições (em co-autoria com o Professor Doutor José de Melo Alexandrino), p. 316.
Ou seja: o constitucionalista Marcelo Rebelo de Sousa diria ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que poderia à luz da Constituição demitir o Governo face à incompetência revelada nos acontecimentos trágicos que vitimaram mais de cem portugueses.
No entanto, pelo menos para já, Marcelo não demitirá o executivo: vai esperar para ver como reagirá António Costa, bem como pelo resultado da votação da moção de censura. Então por uma razão adicional: se este Governo se formou pelo Parlamento, então a sua sorte deverá jogar-se no Parlamento, salvo se existirem razões ponderosas em sentido contrário.
Acresce, ainda, que o PSD tem uma liderança em fim de prazo (o que, num juízo retroactivo sempre fácil, prova que provavelmente o anúncio da saída de Passos Coelho foi precipitado).
10.Enfim, tudo isto dito e redito, importa reter o essencial: obrigado, Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.
No meio da tragédia, evitou uma tragédia ainda maior: a de os portugueses deixarem de acreditar no Estado.
Permite-nos ter esperança que a actual maioria política não prejudique ainda mais o nosso presente – e não prejudique irremediavelmente o nosso futuro.
Marcelo Rebelo de Sousa é, pois, a válvula de escape da autoridade e respeitabilidade do Estado – que não só do regime. O seu discurso mereceu o aplauso de todos os portugueses.
11.A metade dos cidadãos que nele votou sentiu-se orgulhosa do seu voto – a outra metade sentiu-se arrependida por nele não ter votado. Marcelo é o homem certo, no lugar certo, no momento certo.