Constança Urbano de Sousa. A jurista que seguiu Costa pelo caminho mais difícil, quando queria ser libertada

Já tinha pedido para ser substituída depois de Pedrógão, nunca apresentou formalmente a demissão por lealdade. Sai agora depois de 692 dias à frente do Ministério da Administração Interna, 123 dos quais debaixo de críticas depois do fatídico 17 de junho

Era o momento mais difícil não só do seu mandato, mas também da sua vida. Foi isto que disse Constança Urbano de Sousa na primeira entrevista depois da tragédia de Pedrógão Grande, concedida à RTP a 22 de junho. “Era fácil demitir-me, rolava uma cabeça e o problema continuava. Teria sido cobarde fugir da adversidade”. O discurso, manteve-o até esta semana. Quando questionada sobre as falhas numa nova catástrofe que já aumentou para 106 o número de mortos nos fogos este ano, deslizou nas palavras usadas para expressar o que sentia. “Seria mais fácil ir-me embora e ter as férias que não tive, mas agora não é altura de demissões”.

Sabe-se agora, conhecida a carta de demissão da ministra, que não só teria sido mais fácil como era o que a jurista – que até ir para o governo foi consultora da André e Miranda Advogados – preferia ter feito logo depois da tragédia de Pedrógão Grande. A sua imagem de marca tornaram-se as lágrimas, que ganham novas entrelinhas.

Dizia que seria mais fácil demitir-se, por dentro queria ser libertada

No texto tornado público, Constança Urbano de Sousa detalha que, logo a seguir ao incêndio que matou 65 pessoas (64 diretamente e uma de forma indireta, num acidente de viação, na contabilização do governo), pediu “insistentemente” ao primeiro-ministro que a “libertasse” das suas funções. “Dei-lhe tempo para encontrar quem me substituísse, razão pela qual não pedi, formal e publicamente, a minha demissão. Fi-lo por uma questão de lealdade.”

Constança Urbano de Sousa adianta que esse pedido de Costa era sempre com o argumento de que não “podemos ir pelo caminho mais fácil”. E foi esse argumento que a ministra repetiu nas suas aparições em público, fosse no teatro de operações ou na sede da Proteção Civil. Fê-lo numa entrevista ao DN/TSF. “Naturalmente tiraremos as devidas ilações e eu tirarei as devidas ilações. Agora, neste momento, acho que é muito prematuro estar aqui a seguir pelo caminho mais fácil, que era o caminho mais fácil a seguir, ia satisfazer uma certa apetência que alguns têm pelo sangue, se quisermos”. Repetiu-o a 28 de junho no parlamento, onde esteve para ser de novo ouvida nesta semana, antes de se poder imaginar – mas prever condições para isso teria sido possível, disseram entretanto vários peritos – que o país iria estar de novo de luto.

A carta de demissão, divulgada pelo gabinete do primeiro-ministro, quebrou o mito e expõe aquela que era a razão central para a ministra que esteve 692 dias funções, 123 dos quais debaixo de críticas depois do fatídico dia 17 de junho, ao referir pela primeira vez a lealdade como argumento para aceitar o argumento do chefe do executivo de que era preciso enfrentar as adversidades, bem como preparar a reforma do modelo de prevenção e combate a incêndios. "Desde junho de 2017", reforça a carta de demissão, "aceitei manter-se em funções apenas com o propósito de servir o país e  o governo que lidera, a que tive a honra de pertencer.”

Este fim de semana, depois da nova tragédia, Constança Urbano de Sousa tornou a pedir para sair. Costa tornou a segurá-la e publicamente a ministra tornou a recusar desconforto com a sua posição. Tal como Costa, que questionado pela SIC sobre essa hipótese, respondeu com o “minha senhora, não me faça rir a esta hora” – numa sucessão de afirmações que levaram à convocação de manifestações de revolta em todo o país e terão contribuído para Marcelo usar, na noite de ontem, a expressão "humildade cívica".

As falhas que podiam ter sido evitadas

Associada ao mandato de Constança Urbano de Sousa no MAI está a remodelação de comandantes distritais da Proteção Civil já este ano, considerada pelos peritos demasiado em cima do período de incêndios.

E uma das críticas apontadas no relatório da comissão técnica independente é o facto de não ter sido antecipada a fase Charlie perante as previsões meteorológicas que ditavam risco máximo de incêndio no fim de semana da tragédia de Pedrógão. Esta decisão cabia ao MAI, que negou já depois do fogo haver necessidade disso.

Dias depois, a 22 de junho, seria um despacho assinado pelo Secretário de Estado das Florestas e do Desenvolvimento Rural, Amândio José de Oliveira Torres, a antecipar a fase crítica de combate aos fogos em oito dias.

Entretanto, no final de setembro e apesar de uma seca histórica, o governo não prolongou logo a fase Charlie. E, mesmo quando tal ocorreu, os meios mobilizados não voltaram a ser equivalentes aos do verão. Foi ativada apenas a rede primária de postos de vigia, 72 postos dos 236 instalados no país e os mesmos que estavam a funcionar em junho, o que a comissão de peritos convocada pelo parlamento entendeu ser uma das falhas em Pedrógão.

No último domingo, três dias depois de ser conhecido o relatório que tanto o primeiro-ministro como a ministra disseram até ao fim da semana ainda não terem lido, só estavam na mesma a funcionar esses 72 postos de vigia. A GNR confirmou-o ao i, indicando que "a ativação da Rede Primária de Postos de Vigia foi determinada à GNR pelo Ministério da Administração Interna". Ou seja, foi também o MAI que agora terá um novo titular que não pediu que fosse alargada.

Tanto Costa como Constança Urbano de Sousa tinham remetido para o próximo sábado medidas, afirmando ter lido apenas a nota divulgada à imprensa. Pelo menos a questão dos postos de vigia vinha nesse comunicado de três páginas, que asseguram ter lido quando foi tornado público.

Dignidade pessoal

Na carta de demissão, Constança Urbano de Sousa diz que, terminado o período crítico da última tragédia e estando prontas as medidas a discutir no conselho de ministros extraordinário do próximo sábado, estão “esgotadas todas as condições" para se manter em funções. E diz que Costa "tem de aceitar" o seu pedido de demissão, até para preservar a sua “dignidade pessoal”.

Depois do ultimato de ontem de Marcelo Rebelo de Sousa, o primeiro-ministro começou o dia com um segundo beco, o que ficou patente nos termos usados na nota remetida à comunicação social esta manhã. “Apresentou-me formalmente o seu pedido de demissão em termos que não posso recusar”, lê-se no documento, assinado à mão por António Costa. O que, até ver, deixa em aberto a leitura de que o primeiro-ministro poderá não concordar com as razões de Constança, respeitando-as apenas.

Constança Urbano de Sousa nasceu em Coimbra em 1967, por coincidência o distrito com mais vitimas mortais nos fogos de domingo. É, desde 1997, doutorada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Sarreland, Alemanha. É pós-graduada em Direito Europeu pelo Instituto de Estudos Europeus da Universidade do Sarre (1994) e licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1991).

As suas principais áreas de investigação relacionam-se com o Direito da União Europeia, o Direito de Imigração e Asilo, a Cooperação Policial e Judiciária, a Segurança Interna e o Espaço Europeu de Liberdade, Segurança e Justiça.

No MAI, tinha trabalhado como assessora entre 2000 e 2002 e 2005-2006, era António Costa ministro. As forças de segurança eram o seu forte. Entre setembro de 2006 e 2012, foi Coordenadora do Núcleo Justiça e Assuntos Internos na Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia (REPER) e chefiou a delegação nacional ao CEIFA (Comité Estratégico Imigração, Fronteiras e Asilo do Conselho da UE), que presidiu em 2007.

No recém-remodelado site do governo, este seu currículo surge ao lado de um retângulo verde onde se lê que, até na primeira semana de outubro, tinham sido apagados 870 incêndios em Portugal. O problema foi os que podiam ter sido prevenidos ou não houve força suficiente política e operacional para apagar mais depressa.