Álvaro senta-se na esplanada do café que serve de ponto central à aldeia enquanto espera pela hora do curativo. “Daqui a nada, lá vou eu outra vez”, comenta, enquanto arregaça as calças para mostrar as ligas brancas que ainda lhe envolvem os pés.
No dia do incêndio que atingiu Pedrógão viu a mulher fugir com a filha de carro por uma estrada que ainda não sabia ser a da morte e decidiu ficar para proteger uns barracões que tinha ao pé de casa. Salvou a casa e parte desses anexos, mas nem a força que o fez andar por um chão que ardia o livrou de ver morrer os animais e as oliveiras que lhe serviam de alimento. Rosete, a mulher, que se junta à conversa vinda do supermercado, até lembra: “Veja bem que tive de ir comprar azeite. Nem me lembro de alguma vez ter feito isso.”
Em Vila Facaia, uma das aldeias mais fustigadas pelo fogo de 17 de junho, não morreu ninguém. Mas não é por isso que os dias são mais fáceis. “Já viu o que é ter de olhar para isto todos os dias?”, constata Céu, e aponta para os telhados que já não existem de casas que mal se aguentam em quatro paredes.
Sem que nos apercebamos, juntam-se à conversa mais e mais moradores, com mais e mais histórias para contar. Até porque se há os que preferem não falar, na esperança de que o silêncio cale também as memórias, há os que acreditam que trocar histórias pode ajudar na dor.
Céu garante que em 71 anos de vida nunca viu uma coisa assim. “Aquele olho de fogo a vir em nossa direção, valha-me Deus.” As mãos vão ao peito ao lembrar a hora em que percebeu que não vinham bombeiros a tempo de salvar a aldeia. “Foi aí que gritei ‘Senhor, põe aqui a tua mão’.” Também Rosete recorre à fé para explicar o “milagre” – como lhe chama – de estarem ali todos juntos no café para contar estas histórias. É também por milagre, acredita, que naquele dia foi uma das últimas a passar ilesa na EN 236, onde 47 pessoas não tiveram a mesma sorte. “Acredita que só lá passei uma vez entretanto? E tão cedo não passo. É muita dor, muita dor…”, diz, já com a voz baixa mas que não esconde a emoção.
É Álvaro que corta os lamentos da mulher, com as histórias que, no meio da desgraça, não deixam de ter piada. “Aqui na freguesia ao lado, uns foram apanhados pelo fogo durante a matança do porco. O pobre do bicho, desta vez, nem teve de ser chamuscado”, conta, sabendo que vai provocar as habituais gargalhadas contidas de quem ainda não está preparado para a ironia. “Isso nem é para rir, ó Álvaro”, diz Céu, novamente com as mãos ao peito. “E vamos o quê, chorar? Agora é olhar para a frente.”
Neste vaivém entre boas e más memórias, entre os que já conseguem rir e os que veem os olhos encher-se de água sempre que se diz a palavra “incêndio”, há pontos comuns: todos falam em noites mal dormidas desde então, de comprimidos que ajudam a acalmar os pesadelos e de um dia-a-dia que se faz com a certeza de que Vila Facaia não volta ao que era.
Pelos caminhos do fogo
Por muito que o verde já desponte do chão, nas estradas estreitas e em ziguezague das aldeias que entraram no mapa do país pela piores razões, muitas das indicações ainda são dadas por placas derretidas pelo calor do fogo de junho. E o cheiro? Ainda duvidamos se são os sentidos que se confundem e o olfato assume o queimado que os olhos veem, mas não. Quatro meses depois, ainda cheira a queimado em Pedrógão e o rasto de destruição leva-nos até bem perto de casas onde percebemos que, ali, foi por um triz.
António levanta os braços bem alto para tentar exemplificar por gestos as chamas de 30 metros de altura que lhe ladeavam a casa. “Era eu com uma mangueira, o meu filho com a água do tanque. Nem sei bem como, mas salvámos a casa”, conta. Nesse momento, chega de trator Arnaldo. “Este é que tem histórias para contar”, garante António. Não é para menos. Naquele dia, Arnaldo salvou a sua casa, a da cunhada e a de uns compadres. “Quando nos vimos sem bombeiros, percebemos que só nos tínhamos a nós”, conta Arnaldo, que assim que se viu fora de perigo matou um cabrito para um almoço de agradecimento a todos os que o ajudaram a estar aqui hoje.
E já que falamos em almoço, está na hora, até porque da cozinha de António ouve-se o som do “Jornal da Tarde”, sinónimo de um relógio a bater a uma. “Ouvi há bocado nas notícias que a ministra se demitiu”, diz Arnaldo. E quando se esperava um coro de aplausos, a surpresa. “Não tinha nada que se ter demitido. Quando foi da tragédia de Entre-os-Rios o Jorge Coelho foi logo, esta não. Mostrou-se uma mulher de coragem.” António encolhe os ombros, com ar de quem ainda não pensou no assunto, e deixa o amigo falar. No fim, e mesmo antes de entrar para se sentar à mesa, olha em volta e diz: “Tenho pena de nunca mais ver isto como era. Talvez os meus filhos ou os meus netos saibam o que é floresta.”
Os que ficam
Estes olhos postos no futuro já não pertencem a Marta. Ela sabe que em Nodeirinho já eram poucos e que, depois da morte de 11 habitantes, são ainda menos os que ficam para dar continuidade à terra onde nasceu.
“Somos meia dúzia agora, passo dias sem ver ninguém”, conta, com os olhos postos no chão e que ignoram o que chega em som alto da televisão que lhe serve de companhia. Aliás, nos últimos dias, até evita olhar para ela. “Ver aqueles incêndios parece que fez voltar tudo à memória”, admite, abanando as mãos em frente à cara, como se isso ajudasse a sacudir o que lhe vai na cabeça.
Sabe que os novos vão embora e os velhos morrem. “É assim a vida.” E por isso sabe também que esta aldeia dificilmente volta a ser aquela que, em tempos idos, chegou a ter mais de 200 pessoas. “Nunca mais na vida isto volta a ser o que era. Nodeirinho acabou.”