O acórdão da Relação do Porto que usa referências da Bíblia e da xaria e declara que o “adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem” vai ser objeto de análise por parte do conselho plenário do Conselho Supremo da Magistratura (CSM) na próxima reunião ordinária, prevista para o início do próximo mês. Segundo o i apurou, quer dê ou não entrada uma queixa externa junto do CSM, a decisão polémica poderá também ser suscitada pelos conselheiros.
A este órgão máximo dos juízes cabe exercer ação disciplinar sobre os magistrados judiciais. Numa nota emitida ontem, o Conselho Supremo da Magistratura levanta um pouco o véu sobre potenciais consequências, ao dizer que “nem todas as proclamações arcaicas, inadequadas ou infelizes constantes de sentenças assumem relevância disciplinar”. Não obstante, esta mesma nota ressalva que os juízes nos tribunais superiores não se encontram sujeitos a inspeções classificativas, mas a promoção à Relação e o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça têm em consideração todos os “elementos relevantes que se encontrem disponíveis no Conselho Superior da Magistratura”. O acórdão que está a ser objeto de contestação por parte das associações que trabalham com vítimas de violência, como a UMAR ou a APAV, é assinado por dois juízes desembargadores, Joaquim Neto de Moura e Maria Luísa Abrantes, ficando assim em aberto que o teor da decisão poderá pesar caso os magistrados pretendam concorrer ao Supremo.
Caso remonta a 2015
O caso de violência doméstica reapreciado pela Relação do Porto remonta a 2015, quando a vítima começou a ser assediada pelo marido, de quem estava separada de facto, e por um homem com quem tinha tido uma relação extraconjugal uns meses antes. Às ameaças verbais seguiram-se agressões físicas, que deixaram a mulher com equimoses em todo o corpo. Na primeira instância, os dois arguidos foram condenados em penas suspensas, decisão de que o Ministério Público recorreu para a Relação alegando que o sentimento de traição e ciúmes não retiram discernimento ao marido, pedindo uma pena de prisão efetiva.
No acórdão agora público, proferido este mês, os juízes mantêm as penas suspensas e o entendimento de que, se este homem tinha estado internado com um diagnóstico de depressão, esse estado poderia prolongar-se por anos. “Não merece, pois, qualquer reparo (e, muito menos, a censura que lhe dirige a magistrada recorrente) o juízo probatório e valorativo efetuado pelo tribunal”, lê-se no recente acórdão.
O trecho que está a motivar a indignação das associações prende-se com a forma como os juízes desembargadores optaram por fundamentar a ideia de que não estão de acordo com a avaliação que o MP faz da gravidade dos factos e da culpa dos arguidos, invocando o contexto de adultério como atenuante. “Foi a deslealdade e a imoralidade sexual da assistente que fez o arguido X cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou o ato de agressão, como bem se considerou na sentença recorrida”, declarou a Relação do Porto.
Fonte próxima da magistratura indicou ao i que, mais do que a decisão de atenuar as penas dada a instabilidade psicológica do arguido, é a explanação sobre adultério que causa perplexidade, uma vez que a traição, atualmente, não tem qualquer consequência legal: até à revisão do Código Civil, em 2008, ainda poderia ser usada nos casos de divórcio litigioso mas, hoje, a separação sem consentimento não define os factos que podem ser apresentados pelos cônjuges. Em última instância, uma traição pode ser apresentada como facto que mostre rutura definitiva do casamento por quem é traído ou por quem trai e quer refazer a sua vida, explicou ao i a mesma fonte.
O perigo das palavras
Para as associações, o que preocupa é, sobretudo, a mensagem do acórdão. “Para além de iníqua, é perigosa, na medida em que, ao manifestar compreensão perante atos violentos tão graves, legitima de algum modo comportamentos futuros de idêntica natureza”, disse em comunicado a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, que ontem assinalou que não é a primeira vez que o juiz Neto de Moura utiliza este tipo de argumentação.
Em causa, um acórdão de 2016 em que o desembargador declara que uma mulher que comete adultério é “uma pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil e imoral”. O i tentou contactar o desembargador, que ontem não estava disponível para comentar a apreciação que fez sobre este caso.
A indignação promete sair à rua esta sexta. No Porto está a ser organizado nas redes sociais um protesto junto à antiga cadeia da Relação, onde Camilo Castelo Branco esteve preso por adultério no séc. xix. Em Lisboa, a UMAR, que considera o acórdão inadmissível, convocou uma concentração para a Praça da Figueira, pelas 18h.