Hungria. “Estão a falsificar a nossa história”

Em Budapeste sente-se a pressão de um governo ditatorial e nacionalista que tenta alterar o passado em proveito próprio. Mas há ativistas que não desistem de manter vivo o respeito pelas vítimas da história de um país que parece ter esquecido o seu legado

A viagem da Sérvia até à Hungria ganhou o prémio na categoria de “a mais desconfortável da vida”. Foi a primeira que fizemos em modo interrail, cujo passe nos permitia deslocarmo-nos de comboio durante cinco dias por quaisquer países incluídos no serviço. Com o passe da Eurail, é raro termos de reservar lugar nos comboios, mas sendo este um noturno foi preciso passar por uma bilheteira e pedir dois lugares de Belgrado até Budapeste.

A modalidade da reserva incluía uma “cama” e daí que a nossa ingenuidade nos levou a pensar que as próximas oito horas seriam as de maior conforto de toda a experiência balcânica. Estávamos absolutamente erradas. Quando demos de frente com a cabina que nos estava destinada, demos connosco num estreitíssimo compartimento cujas camas se resumiam a seis tábuas forradas a tecido, três de cada lado da cabina, cuja estabilidade era no mínimo duvidosa.

Chegámos à conclusão que o mais seguro seria optar por escolher as camas do terceiro andar, não fôssemos nós levar com aquilo na cabeça. As escadas improvisadas provocaram alguns ataques de riso e a quase impossibilidade de as usar provocaram uma reprimenda em sérvio do revisor, que nos viu a tentar apoiar os pés numa das camas improvisadas. O calor provocado por um exagerado aquecimento central tornou-se insuportável e decidimos abrir as janelas do corredor, com esperança que corresse um pouco de ar fresco. O ar lá fora era gélido, o luar refletia-se nas enormes planícies que corriam a alta velocidade, num cenário digno de um filme de Hayao Miyazaki.

Bem encostadas, cada uma do seu lado da cabina, lá acabámos por adormecer e só acordámos quando a polícia das fronteiras nos bateu à porta. Estivemos imenso tempo parados, tanto na saída da Sérvia como na entrada para a Hungria, cujas normas fronteiriças estão mais estritas que nunca. De novo de olhos fechados, já só voltaríamos a acordar com os berros do mesmo revisor rezingão e de alguns dos passageiros que nos avisavam sobre a chegada a Budapeste. Eram seis da manhã, já havia imenso movimento nas ruas. Em frente à estação estava um dos imensos Starbucks da cidade. Eu nunca havia entrado num porque os preços sempre me pareceram ridículos, e com razão, já que dei por mim a pagar seis euros por um sumo de laranja natural que chorei durante todo o dia. A moeda ainda não era o euro, mas o ar era o mais ocidental que respirávamos em dias que nos pareciam meses. A noção do tempo em viagem é sempre confusa, um dia pode demorar um ano ou uma hora, as datas deixam de ser assim tão importantes e a luz do sol é o ponteiro que melhor nos guia.

Em Budapeste ficámos hospedados em casa de um casal amigo que está a trabalhar há um ano na cidade. O emprego fica numa multinacional, trabalham com vários conterrâneos e têm direito a ir a Portugal uma vez por mês, viagem essa comparticipada pela empresa.

A casa onde vivem é digna de um cenário de filme clássico italiano. Ao entrarmos por um portão de madeira já muito gasta, um enorme terraço circundado por varandas imponentes e várias plantas nos beirais dão um ar sublime àquilo que, por fora, parecia só a entrada para uma casa velha.

Com enormes pilares verticais, ao cimo vê-se o céu azul limpo, indicador de que também em Budapeste vamos ter sorte com a meteorologia.

Depois de repostas as energias fomos até ao museu Casa do Terror, cujo objetivo é imortalizar as vítimas dos regimes fascistas e comunistas. O museu, inaugurado em 2002, é massivo, interminável e exaustivo. As enormes salas estão desenhadas e pensadas ao pormenor para que o visitante sinta o desconforto natural de uma casa que serviu de teto a inúmeras torturas e mortes de vítimas de sistemas desumanos. Porém, para quem tiver algum conhecimento mais aprofundado da História, é nítida a tentativa de alteração de contextos e cenários políticos em favorecimento de um sistema nacionalista.

Assim o reclamam ativistas húngaros, maioritariamente de gerações mais velhas porque “os mais novos não se podem mostrar contra o sistema, caso contrário ficam sem emprego”, explicam-nos mais tarde. Consideram o museu um atentado à história da Hungria, numa tentativa de tentar minimizar a participação húngara no desfecho da limpeza étnica durante a ii Guerra Mundial. Maria Schmidt, diretora e curadora do museu, tem sido acusada de alterar a história e ignorar o Holocausto, focando-se na ocupação soviética e ignorando a participação da Hungria nos horrores da ii Guerra Mundial.

“É mais uma aliada do sistema de Orbán, ela faz parte do governo dele, a mesma historiadora que considera Schengen o fim da soberania do seu país, que afirma que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem é o maior causador da crise europeia por colocar os direitos humanos em primeiro plano em vez da defesa das fronteiras”, lê-se num dos documentos de protesto contra a “falsificação da História”.

“Quando vieram para o poder, há sete anos, a primeira coisa que fizeram foi reescrever a Constituição e mudar o primeiro parágrafo, como se 60 anos de História não tivessem existido. Como se a minha existência nunca tivesse acontecido”, diz-nos Andrew, cruzando os braços e falando calmamente. É professor de História e tem dois filhos. O cabelo branco não o impede de estar no seu turno de protesto todas as semanas, mesmo sendo de fora da cidade. Nascido em 1957, assistiu ao domínio soviético, os pais foram vítimas dos nazis e a avó foi baleada na cabeça nas margens do Danúbio, uma vez que todos eram judeus.

O memorial chama-se “Memorial às Vítimas da Invasão Alemã”. Deveria homenagear as vítimas do Holocausto e tudo parecia bem até que, depois de construído, uma parte da população se apercebeu de que “tudo estava errado”. “A estátua mostra o Anjo Gabriel de maçã real na mão e a águia alemã pronta para caçar. Eles querem fazer parecer que a Hungria foi uma vítima da ocupação alemã quando a História está farta de nos provar que a Hungria foi aliada dos Alemães. Isto não é correto. Nós não fomos ocupados.”

Também o sistema eleitoral foi alterado assim que subiram ao poder, desde a organização geográfica ao número de rondas de votos. O que faz com que este governo, com apenas 44% dos votos, tenha o poder, uma vez que assim foi possível conseguirem dois terços dos lugares no parlamento.

Frente à estátua está um conjunto de elementos que os ativistas colocaram como lembrança constante das vítimas do Holocausto. “A minha mãe morreu em Auschwitz”, lê-se num dos cartazes. Há traduções em várias línguas do documento que explica a todos que visitam o monumento a gravidade do que ele representa. “O que me preocupa mais são as gerações mais novas. O sistema de ensino é tão mau que eles não fazem ideia do que se passa, não conhecem a história, não têm posição política”, explica Andrew. “Os meus filhos, com mais de 20 anos, descredibilizam constantemente o perigo desta ditadura pseudodemocrática e nem sequer entendem o populismo. É assustador que a maioria dos apoiantes da extrema-direita sejam os jovens.”

Na sua opinião, o complexo de inferioridade ajuda ao crescimento de uma sociedade machista, racista, xenófoba e homofóbica. Propaga-se uma ideia de soberania e poder de um país que, na verdade, está em constante desmoronamento. Mas o que mais o revolta é que os maiores propagadores destes ideais são os jovens: “Como pode haver tanto ódio numa geração tão jovem quando eles nem passaram pelos sistemas como nós? Deviam ser eles a mudar mas, neste país, os mais velhos são os que têm a mente mais aberta.”