A cidade de Budapeste ficou-nos guardada com carinho, pelas maravilhosas construções e pelo estilo cosmopolita que se vive naquelas ruas. Apesar de nos expulsarem dos restaurantes às 22h00 e de haver comentários sexistas até em menus de restaurantes onde “picante o suficiente para raparigas” se podia ler numa ementa de um restaurante asiático supostamente moderno onde os funcionários e gerente eram, na sua maioria, húngaros.
Apesar de ficarmos a saber que os nossos amigos não estão propriamente felizes com a vida em Budapeste, embora recebam salários bem mais justos do que os que lhes ofereciam em Portugal para as mesmas funções e apesar da vida ser mais barata, a verdade é que não estamos habituados a viver sob um governo limitado e ditador, nem com uma homogeneidade de comportamentos xenófobos e homofóbicos. “Em Portugal, ainda que existam pessoas assim é raro assistirmos a situações. Mas uma vez uns amigos nossos iam no comboio e um deles ia ao lado da namorada, mas à conversa com o amigo. Levou uma chapada de um húngaro que começou a implicar a achar que eram gays só porque iam entretidos a conversar. São ridículos”, conta-nos Gustavo a viver há aproximadamente um ano em Budapeste.
A estação de comboios onde apanhámos o comboio para Viena era no outro lado do mundo e isso resultou, como já se estava a prever, em perdermos o comboio que tínhamos planeado. A sorte é que no centro da Europa os transportes internacionais circulam com muita regularidade e vai daí que só tivemos de esperar meia hora pelo próximo.
Quando chegámos a Viena já era noite, o Andreas, cuja mãe é portuguesa e o pai é Austríaco emprestou-nos o sofá durante os três dias que se seguiram. Tinha jantar pronto para nós e falou-nos dos resultados das eleições cujos que acabavam de confirmar as sondagens, ganhando o Partido Popular graças ao jovem Kurz, que fica para a História como o primeiro ministro mais novo de sempre em todo mundo. “Ele foi muito esperto e teve um discurso anti muçulmanos que agradou aos mais velhos que vivem fora das cidades e têm medo. É o resultado do populismo”, dizia-nos enquanto nos servia uma cerveja artesanal, feita por ele mesmo. Vínhamos preparadas para enfrentar uma cidade gélida mas enganámo-nos. Na manhã seguinte Viena recebeu-nos com raios de sol e um céu azul límpido. A cidade tem muita luz, o que comparada às cidades que havíamos visitado durante todo este tempo nos fez matar um pouco das saudades que já tínhamos de Lisboa.
Viena está dividida por distritos e nós ficámos hospedadas no oitavo. No meio de tantas lojas e galerias, decidimos perguntar na rua a um casal onde nos aconselhavam a almoçar. Indicaram-nos que seguíssemos em frente até encontrarmos uma antiga fábrica de locomotivas e máquinas chamada Wuk. Quando demos com o lugar, encontrámos um enorme edifício cujo túnel daria acesso a um terraço luminoso, onde se estendia uma esplanada. Crianças brincavam, saltavam e rebolavam num parque de areia à porta de um infantário. Adultos com cabelos de várias cores, piercings e roupas ousadas bebem cerveja em no bar. Uma mesa está ocupada por um grupo com ar mais corporativo.
O edifício cor de tijolo, que se transformava num enorme quadrado coberto por heras pintadas pelas cores de outono, é hoje palco da cultura “underground” de Viena. Funciona como uma enorme oficina de arte e consideram-no um centro cultural alternativo. Desde as artes cénicas, a ateliês de belas artes, a bares e a um cinema, há ainda espaço para workshops e cursos, bem como para uma pequeno espaço cheio de livros que nos desperta a atenção. À porta vemos o Evangelho Segundo Jesus Cristo de José Saramago. No meio de autores alemães lê-se “António Lobo Antunes”. Decidimos entrar.
Dentro da apertada “Evolutions Bibliothek” está Nikolaus Scheibner, um homem magro, com pouco cabelo, veste uma camisola coçada que está a ouvir atentamente Ilse Kilic, uma figura feminina imponente, quase bruta. Atenta à conversa está também a jovem de 37 anos Michaela Hinterleitner que é poetisa e faz teatros de marionetas. Sonha com os Estados Unidos. Ilse, outrora artista “punk” é casada com Fritz Widhalm com quem já escreveu dez livros em conjunto. “Cada um desenha e escreve uma página e o outro completa a história sem nunca poderem apagar o que o outro disse antes. É uma delícia”, explica Nikolaus, de 41 anos, que se vem a revelar uma testemunha viva do que é ser um artista resistente. Nikolaus é um poeta, um apaixonado pela literatura, é presidente da associação sem fins lucrativos “Zeit Zoo” – O zoo do tempo – e fala do amor que tem aos livros com os olhos de uma criança.
O espaço onde estão hoje, no Wuk, nos anos setenta foi ocupado por artistas que não permitiam que se fechasse o ponto de encontro de tantos artistas e ativistas nacionais. Nos anos 90 Nikolaus juntou-se ao grupo de escritores que se encontrava na “Arena”, como lhe chamavam e aí sonharam criar uma revista literária onde publicassem os vários poemas que esta pequena comunidade produzia. Hoje é o presidente do Zoo do Tempo e da respetiva editora e admite que é de uma imensa dificuldade sobreviver como poeta aos tempos modernos.
A conversa é interrompida por um toque monofónico. Nikolaus tem o telemóvel mais antigo que vimos nos últimos anos, ainda é preciso abrir a tampa para atender a chamada. O pequeno espaço onde estamos é uma biblioteca comunitária que quer dar à população a oportunidade de ler livros de autores menos conhecidos, de todo mundo. “Há tantos escritores extraordinários que são menosprezados. São sempre os mesmos a receber os prémios, os apoios do governo, mas quem escolhe esta vida já sabe que é assim”, diz-nos enquanto sorri ao desfolhar um dos seus livros de poemas. “Mas não é pelo dinheiro que um homem escolhe ser poeta. O poeta é rico pelo que tem dentro de si. O dinheiro serve apenas para que o poeta sobreviva”.