Conceição Gomes, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenadora executiva do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa e da Unidade de Formação Jurídica e Judiciária, falou ao i sobre a urgência de o sistema judicial português começar a valorizar o crime da violência doméstica.
Uma das autoras do estudo apresentado em 2016, “Violência doméstica: estudo avaliativo das decisões judiciais”, promovido pela Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, Conceição Gomes, comenta a gravidade da ineficácia do sistema que levou ao arquivamento da maioria dos inquéritos abertos pelo Ministério Público entre 2001 e 2012. Segundo a autora, uma das consequências da cultura jurídica que banaliza a violência doméstica pode ser confirmada pelo número de suspensões de penas, bem como nas fundamentações e argumentações que são tidas em conta no decorrer dos processos que se concretizam nas minimizações de penaa. O grupo de investigadores de que Conceição Gomes faz parte analisou mais de 500 decisões judiciais e entrevistou magistrados, cujas respostas vêm confirmar a tolerância à violência doméstica por parte de grande parte do sistema de justiça português.
A ministra da Justiça diz que” um caso isolado não faz o sistema”, mas este não é um caso isolado. Certo?
Para começar é preciso distinguirmos dois planos. Um é a argumentação utilizada pelo acórdão sobre a fundamentação de uma decisão. E o outro é a decisão e a forma como os tribunais respondem ou julgam os casos de violência doméstica. São planos isolados. No que respeita à utilização destas expressões em concreto como argumentação, eu acredito que não seja muito frequente no nosso sistema, porque de facto isto é absolutamente inaceitável. A utilização de fundamentação com uma linguagem de argumentos que nem jurídica é, em que se serve dela para desvalorizar o acontecimento de um crime, fazendo apelo a referências que não têm nenhum enquadramento jurídico, manifestamente inconstitucionais, são um atentado direto aos princípios fundamentais de um Estado de direito.
E será exceção?
No caso deste juiz parece que não é a primeira vez que algo semelhante acontece, porém pode ser considerado um caso isolado do sistema. Mas isso não quer dizer que não seja de facto necessário discutir e debater o assunto. O poder judicial não pode fugir ao debate, ainda que fosse um caso completamente isolado, que não é o caso. Não se resolve o assunto só com a abertura de um processo inquérito sobre o juiz, é importante que se reflita sobre que mecanismos podem existir para que este tipo de linguagem, para que este tipo de afronta a princípios constitucionais não aconteçam. E mais, chamo a atenção para um aspeto que não tem sido muito salientado. É que isto trata-se de um acórdão. Um acórdão é tomado por ordem de um coletivo, portanto os holofotes incidem naturalmente sobre o senhor juiz mas ele é o relator do acórdão, quem decide é o tribunal. Do ponto de vista da lei, nas decisões dos tribunais superiores o assunto é discutido com outros juízes, um coletivo que pode intervir. Há que levantar a questão: Houve debate? Se houve é porque não é só este juiz que esteve de acordo com esta linguagem. E se não houve debate é preciso perceber porque é que esse mecanismo não foi acionado.
A que conclusão se chegou com este estudo? Os magistrados portugueses levam ou não a sério a violência doméstica?
Era preciso saber como é que o sistema judicial responde à violência doméstica. A grande conclusão deste estudo é que, de facto, nos parece que continua ainda a existir uma cultura judiciária de tolerância à violência doméstica. E essa cultura manifesta-se ao longo do desenrolar dos processos, na forma como se desvaloriza o contexto, em que não se compreende a situação de vulnerabilidade da vítima, a dependência económica em que tantas vezes esta se encontra e que a condiciona. Há falta de compreensão quanto à própria resistência em colaborar. E há de facto muitas vezes uma limitação causada pela condição das vítimas por causa dos filhos ou mesmo delas próprias. E aqui também é preciso lembrar que precisamos de políticas sociais fortes, não passando a responsabilidade só pelos tribunais. Porque é normal que quando o sistema tem falhas de resposta as próprias vítimas sejam resistentes quanto à colaboração no processo. Por exemplo, se as pessoas dependem economicamente de outras, deveria existir um suporte económico que as sustenha durante o decorrer dos processos – que são tantas vezes tão longos – para que se quebrem esses ciclos de dependência.
Há muitas falhas?
A forma como o sistema judicial funciona desde o tempo que dura, à ineficiência do sistema, ao ouvir várias vezes as mesmas pessoas e tantas vezes sem privacidade…Há um enorme caminho a percorrer no que toca às condições em que as vítimas são tratadas no sistema de justiça.
E no que diz respeito à atenuação da pena que também é minimizada.
A medida da culpa. Vão se buscar demasiadas atenuantes. No nosso trabalho temos vários depoimentos em que os magistrados dizem nunca ter lidado com “verdadeiros casos de violência doméstica”.
Mas o conceito de violência doméstica está clarificado no nosso sistema judicial? A violência psicológica é levada em consideração, por exemplo?
O problema não é da lei. O problema é da interpretação da lei. Se eu não sou formada e sensibilizada para perceber que esta é uma violação de um direito fundamental e que é grave, isto leva à desvalorização do crime. Nos depoimentos que recolhemos temos testemunhos de magistrados que indicam só terem lidado com casos de “uns murros ou uns pontapés” mas que “nunca tiveram de julgar violência doméstica”. De facto isto tem uma carga cultural, o facto de na violência contra as mulheres em ambiente conjugal, em contexto familiar, o que se passa é para ficar ali, é um assunto pessoal. E isto é uma dinâmica em debate que estava mais em voga há trinta anos, mas que ainda não ultrapassamos. Ainda não chegamos aquele consenso geral de que a sociedade não pode de todo tolerar estas situações. E, portanto, se nos tribunais se decidir desta maneira, estão a dar um sinal de que realmente, afinal, isto não é assim tão grave. Afinal, até podemos todos dar uns pontapés e chamar nomes porque não é assim tão grave.
Resulta na propagação da violência.
Certamente dá asas à propagação da violência.
Mas há necessidade de tornar a lei mais rígida no que diz respeito ao contexto social para o juiz não interferir na tomada de decisão?
Não. Este não é um problema jurídico. A lei para ser aplicada tem de ser interpretada. Em primeiro lugar tem de se averiguar se há crime ou não e depois, havendo crime, tem de haver de facto uma avaliação da medida da pena e isso depende unicamente da interpretação.
Passará então pela educação e consciencialização dos magistrados?
Terá de passar pela formação. No nosso trabalho há mesmo essa recomendação central: a formação dos magistrados deve ser fortalecida nessa matéria. Deve haver um grande reforço de formação, mas não basta chegar com a medida “vamos fazer acções de formação sobre esta matéria”. É preciso haver bons conteúdos formativos, ver quem são os formadores. Porque o problema não é de todo da parte técnico-jurídica, os atores judiciais sabem e conhecem a lei. O problema é essencialmente da sensibilidade, o de entender este problema como ele realmente é.
Com empatia.
Essa expressão está muito na ordem do dia. Mas sim, com uma sensibilidade para entender que o Estado tem de defender os direitos fundamentais e que neste caso se tratam de violações de direitos muito importantes para as pessoas e que não pode ser vista, como tantas vezes é, com essa leveza. E não só é necessária a formação no centro de formação judiciária e formação contínua mas também nas faculdades de Direito. Quais são as faculdades em que este tema está nos programas curriculares com um peso a sério? Sem ser só tema de uma conferência em que aparecem meia dúzia de estudantes? Nós damos muita importãncia ao processo civil, mas tem de se dar a mesma importância na formação.