A primeira vez que vi Alex Vendrell, da mítica banda punk catalã Inadaptats, foi no YouTube. Cantava em cima da Kasa de la Muntanya, célebre centro social ocupado por anarquistas em Barcelona, instalado num antigo posto de vigilância da Guarda Civil, no bairro popular da Gràcia. O edifício era um dos centros sociais mais antigos da Europa, até que no dia 16 de dezembro de 2014 foi assaltada por agentes das forças especiais da polícia autonómica catalã, Mossos d’Esquadra, obedecendo às ordens de um juiz da Audiência Nacional de Madrid, numa ação judicial batizada de “Operação Pandora”, contra o alegado “terrorismo anarquista”. Alex, nesse teledisco no terraço da Kasa de la Muntanya, cantava uma canção de Ovidi Montflor, em que se fala de “Um dia que durará anos”. Ovidi nasceu em Alicante e morreu em Barcelona. Foi ator e cantor, participou no movimento da Nova Cançó, com Lluís Llach e outros, que usava a língua e a poesia catalã como uma arma de destruição maciça contra a ditadura franquista. Ovidi foi toda a sua vida comunista e pertenceu ao PSUC (ramo catalão do PCE) e posteriormente ao Partido dos Comunistas da Catalunha (PCC), que se cinde do primeiro, quando se dá uma intervenção central da direção de Madrid espanholista. A conversa com Vendrell dá-se, no bairro popular e independentista de Sants, e o nosso ponto de encontro é na Ciutat Invisible. Estamos numa livraria cooperativa e autogerida de bairro, que aposta “nas práticas do pensamento crítico e transformador”, que existe desde 2005. A entrevista continua num restaurante independentista nas redondezas. Um dos dados mais curiosos do chamado Procés (o processo) catalão, assim como do independentismo basco e galego é a existência de milhares de coletivos radicais políticos, sociais e culturais, que atuam na defesa da autodeterminação. Um conceito muitas vezes recusado por correntes anarquistas e autonomistas, fora dessas regiões, como se fosse um resquício de um nacionalismo retrógrado. Como se esse tipo de ação, fosse movimento pelo movimento e envenenasse as ideias. Na Catalunha este tipo de independentistas radicais são muito ativos, a prova é o muito poder dos deputados da CUP. Mas muito antes de eles terem chegados ao parlamento, moviam-se nos bairros e aldeias, mas também na cultura e na música. Como me diz um português que vive numa casa ocupada: “no início dividíamo-nos, aqui no coletivo sobre a questão da independência da Catalunha, até que chegou a Guarda Civil e nos resolveu as dúvidas”.
Como se tornou independentista?
Posso dizer que mamei o independentismo desde pequenino: sou filho de uma mãe basca e de um pai catalão. O meu pai teve que ir com o meu avô, antes da guerra civil, para França. O meu pai era um comunista que lutou na resistência francesa; e da parte da minha mãe, os meus avôs eram comunistas bascos, condenados à prisão. A minha avó morreu. Tive vários tios que foram mortos.
Com esse percurso de história não teve muita opção?
[Risos] Pode dizer-se isso. Sempre vi Espanha como um Estado fascista, que continuou em muitas formas, e com muita da mesma gente, mesmo depois de 78. Eu que nasci em 1972, observei que muita coisa, para mim e para os meus, ficou igual. Apareceram muitas vezes no poder os mesmos de franquistas de sempre agora vestidos de democratas, mas não foi feita justiças às muitas vítimas, ninguém foi julgado pelos crimes cometidos prelo franquismo, nenhum polícia e torturador foi sequer corrido ou incomodado pelo que tinha feito.
Não se pode dizer que esteja tudo igual. Houve uma mudança que garantiu direitos democráticos em 78. Só assim se percebe que as pessoas tenham votado numa constituição, que lhes garantia a saída do franquismo.
Claro. Essa escolha foi feita sobre o peso de uma ameaça militar. Temos democracia, mas não foi mudado um aspeto essencial que é o de quem ocupa o poder. Podemos ver os lugares que ocuparam e ocupam esse militares franquistas e os seus filhos, e isso não mudou. Seria como no “Leopardo” [alusão ao livro de Giuseppe Tommasi di Lampedusa, que mostra como os aristocratas sicilianos adaptaram-se à invasão de Garibaldi, “se não nos metemos neste assunto, eles vão fabricar uma república. É preciso que pareça que tudo mude, para que tudo fique na mesma”, explica o protagonista, dom Fabrizio Salina, príncipe de Lampedusa.], mas mais calmo – aqui não houve nem processo, nem rutura. Simplesmente acomodaram-se, disfarçaram-se e seguiram o seu caminho. Fizeram-no de uma forma bem feita, aliás, como as elites espanholas o têm feito sempre. Um país que reagiu sempre a qualquer forma de progresso e de modernização da forma mais arcaica e violenta. E que só andou ligeiramente para a frente quando havia pequenas portas, desde que não fosse colocado em causa o poder da oligarquia espanhola que vem de há muito muito tempo. Enquanto em Portugal havia uma revolução, começaram a cair os regimes ditatoriais, que tiveram o beneplácito da comunidade internacional, Portugal, Grécia e Espanha. Mas aqui fez-se tudo para evitar que essa mudança significasse uma revolução.
De qualquer forma, houve mudanças até para o catalão. A transição também significou as autonomias e a eleição de um partido regionalista catalão, a Convergência e União, que impulsionou, entre outras coisas, o ensino do catalão, que até aí era muitas vezes proibido.
A repressão depois da guerra civil foi muito dura. Foi reprimida toda a gente: comunistas, anarquistas, republicanos, catalanistas. Muitos foram eliminados. Quiseram liquidar a nossa identidade e cultura. Mas ela sempre teve latente. O independentismo acontece quando há um nacionalismo mais forte de uma outra nação mais poderosa que põe em causa a tua identidade. Isso em termos menos violentos, também funcionou depois da transição de 78. É visível que este aumento recente do sentimento independentista é fruto desta repressão. O chumbo do Estatuto da Catalunha pelo Tribunal Constitucional em 2010, voltou a lembrar-nos que a nossa capacidade de decidir a a nossa identidade está sempre em causa. E isso fez sair muito mais gente do armário e ganhar consciência que o Estado espanhol não era um ponto de partida, como pretendiam os regionalistas, mas era um ponto de chegada, e até com muitos retrocessos nos últimos tempos.
Quando se vê os estudos a maioria da subida do sentimento independentista dá-se durante a crise, vários anos depois do chumbo do Estatuto. Isso não teve um efeito colateral negativo? As pessoas estavam na rua a contestar, com o 15 M, os cortes sociais e a austeridade, e de repente esse movimento é de alguma forma abafado pelo crescimento do sentimento nacional?
Não obrigatoriamente, aqueles que da parte da esquerda lutam pela autodeterminação, desde os sociais-democratas, entre aspas, da Esquerda Republicana da Catalunha aos mais radicais e anticapitalistas da CUP, sempre tiveram em mente que a independência da Catalunha era necessária para concretizar um projeto de esquerda que combatesse as desigualdades sociais. Colocar em causa o ponto frágil do Estado espanhol, que é a unidade territorial, contribui para dar um forte abalo nas oligarquias existentes e permitir que em toda os sítios de Espanha se possa lutar com mais eficiência para uma mudança social. Estamos a procurar maneira de unificar as diferentes lutas sociais numa expressão mais vasta da luta pela autodeterminação das pessoas e pela sua necessidade de decidirem o seu futuro. A Catalunha tem uma tradição de esquerda e de rebelar-se contra a globalização neoliberal, e nessas lutas sempre participaram coletivos independentistas de esquerda.
Mas isso não é contraditório? Em vez de unirem lutar sociais com as restantes pessoas do Estado espanhol acabam a fazer unidade na ação com o partido herdeiro do regionalismo de Pujol, que prosperou, e por vezes de forma pouco lícita, com os negócios da transição.
Nós sempre fomos contra esses setores e contra uma burguesia catalã que é o braço executor das políticas económicas espanholas. Isto é um processo cheio de contradições. Mas para nós a forma de conseguir ver uma luta de classes, visível e transparente, passa por resolver a questão nacional. Espanha nunca conseguiu obter a hegemonia absoluta, sempre houve a resistências das nações sem Estado que se opuseram a essa tentativa de esmagamento e ao modelo centralista. Nós entendemos que só é possível uma luta de classes a sério e vitoriosa quando se rompa a cortina de fumo que é a unidade de Espanha. Neste terreno de pouca clareza beneficia a burguesia catalã e a burguesia espanhola. Alguns que saem a defender a unidade de Espanha são oriundos da classe operária, mas mesmo em setores progressistas, como o Podemos, há muita gente que é contra a autodeterminação da Catalunha, porque se alimentou sempre a ideologia que Espanha unida era o marco fundamental.
O conflito e o processo catalão não tornou ainda mais visível essa pulsão nacionalista espanholista. Esse sentimento acaba por esconder por debaixo da alcatifa o neoliberalismo, a corrupção e as desigualdades sociais que estão presentes em Espanha.
Não fomos nós que criamos isso. Era a mesma coisa que dizer que o nazismo tinha sido criado, e era da responsabilidade, das revoltas do movimento operário, da revolução bolchevique ou da insurreição spartaquista na Alemanha. É o contrário que acontece, o nacionalismo espanhol, como o nazismo, existe para manter o poder das oligarquias e tapar as injustiças sociais e a corrupção.
O campo político de ação é feito pela definição de quem são os inimigos, e consequentemente os amigos, se se coloca como inimigo o nacionalismo espanhol, coloca como aliados todos os setores catalanistas. O que é substancialmente diferente de colocar, por exemplo, os capitalistas ou os especuladores financeiros como inimigos, e nesse caso definir com aliado quem trabalha e é explorado em toda a Espanha.
A classe operária catalã precisa de ver reconhecida essa identidade para ter uma voz. É preciso esta concretização, para que ela ganhe visibilidade. Quando participamos num marco espanhol essa voz acaba diluída no nacionalismo espanhol. Eu acredito que a revolução social tem que estar ligada à ideia de autodeterminação das comunidades que são mais silenciadas. É aliás uma ideia que vem com a revolução russa e com a discussão das nacionalidades subjugadas no quadro do império czarista. A resolução destas desigualdades nacionais, a autodeterminação de todas as populações é que vai permitir expressar e conduzir a luta de classes de uma forma mais clara.
Não é contraditório que o local onde o independentismo tradicionalmente tem menos força é na chamada “cintura vermelha” de Barcelona onde existem as fábricas e os bairros operários?
Isso está a mudar. É uma situação que tem de ser explicada no quadro dos últimos 40 anos do chamado regime de 78. Esta cintura que sempre tinha sido na Catalunha um foco de resistência e de afirmação de classe e de catalanismo foi por ação de vários governos , nomeadamente do PSOE, desmobilizando-se. O nosso trabalho da esquerda independentista tem sido nesses bairros, de modo a voltar a mobilizar as pessoas, nós sabemos que é nestes bairros e localidades que temos de trabalhar. E isso notou-se no referendo de 1 de outubro, em muitos bairros operários a gente resistiu a uma repressão duríssima para conseguir votar. Isso aconteceu em zonas em que tradicionalmente de imigração de várias partes de Espanha. Essas pessoas perceberam que o projeto independentista e de autodeterminação é um projeto revolucionário, porque lhes pretende dar voz, contra uma situação no Estado espanhol que sempre os abafou, para manter as elites de sempre. Mas os nossos instrumentos de chegar às pessoas são muito limitados que o aparelho de comunicação e propaganda do espanholismo na comunicação social. Por isso, percebemos a importância de ocupar as ruas e de fazermos da rua um instrumento de mobilização e de conquista de consciência.
Na escola ocupada que estive durante a votação do referendo, um dos responsáveis era um empresário, com uma pequena empresa de dez pessoas, e que me afirmava que o grande problema é que a Espanha rouba a Catalunha e dá dinheiro em subsídios para gente da Estremadura não fazer nada. Isso não é um discurso quase racista e que não tem nada que ver com a luta de classes?
Claro. Isso é um disparate. O nosso problema não é que haja uma contribuição solidária para as populações mais pobres do Estado espanhol. O nosso problema é que o dinheiro não chega as mãos das pessoas que mais necessitam e não serve para lhes dar poder. Fica pelo caminho, na corrupção e na apropriação da mais valia, no pagamento ao roubo dos banqueiros. Num processo de autodeterminação também há luta de classes, aquilo que eu quero para a Catalunha não é certamente o mesmo que esse empresário quer, embora possamos estar momentaneamente de acordo que cabe a todas as pessoas que cá vivem decidirem o seu futuro. Há setores da burguesia catalã que podem pregar esse discurso fácil que “Espanha nos rouba para dar aos pobres”, quando na realidade o que pretendem é manter o mecanismo existente que permite roubar aos pobres e aos trabalhadores da Catalunha. Até agora esses setores foram parte desde mecanismo de roubo. Muita gente que ocupou os colégios para garantir o referendo, não diria que “Espanha nos rouba”, mas que o Estado espanhol nos reprime e manda a polícia impedir de votar, que nos impede que aprovemos leis como a da pobreza energética que apoiava as populações mais pobres ou as leis dos direitos LGTBI. É isso que mobiliza as populações. A grande diferença é que há uma maioria progressista no parlamento catalão que é travada pelo Estado espanhol. Os menos nacionalistas somos nós, os independentistas.
Mas em que medida esse processo está a mudar isso?
Está porque houve um empoderamento das pessoas. Quem defendeu os colégios eleitorais foram as pessoas com os seus próprios corpos. Foram os trabalhadores, os bombeiros as populações que defenderam as urnas contra a polícia e o seu direito a votar. Isso mostrou-lhes o seu poder. Muda as coisas. Eu vivo numa aldeia. Foi toda a população que saiu para impedir que nos tirassem as urnas, a gritar: “as ruas são sempre nossas”. Isso mostrou que as pessoas tinham poder e que o podem reivindicar para mudar a sua vida. Isso assusta a burguesia catalã, porque estavam habituados a serem eles a definir as coisas mediante as suas negociatas com Madrid.