Quando, em 2016, Rose McGowan contou no Twitter que tinha sido violada por um homem poderoso de Hollywood, logo surgiram especulações sobre a possibilidade de se referir a Harvey Weinstein, produtor e distribuidor fundador da Miramax, impulsionador do cinema independente americano que ajudou a fazer nomes como Quentin Tarantino ou Larry Clark. Sabe-se agora, pelo New York Times, que em 1997 Weinstein comprou o silêncio da atriz num acordo de 100 mil dólares.
Desde o início dos anos 90, recorda a Vox, que havia em Harvey Weinstein um padrão de comportamento à vista de todos em Hollywood: escolhia uma jovem aspirante a estrela, «frequentemente loira, por vezes talentosa, sempre bonita» a quem ofereceria um papel num filme, uma capa de uma revista e de quem se fazia acompanhar num ou outro evento da indústria – para depois passar a uma outra jovem aspirante a atriz – «e algumas carreiras dessas estrelas sobreviviam à perda da atenção de Weinstein», caso de Gwyneth Paltrow, por exemplo, «mas a maior parte das vezes não». Entre isto que estava à vista de todos iam surgindo rumores do que se passava em privado – e que veio agora a público, primeiro numa investigação do New York Times, publicada a 5 de outubro, seguida de outro artigo, que acrescentava nomes à lista de actrizes, cinco dias depois, na New Yorker, que dariam força a muitas outras mulheres que se tinham visto ao longo dos anos nas mesmas circunstâncias a denunciarem o produtor, que reagiu de forma confusa e contraditória às acusações – reconhecendo por um lado que fez mal, por outro negando-as.
Acabaria em todo o caso despedido da própria empresa que fundou com o irmão, a Weinstein Company, que se sucedeu à Miramax – e não conseguiu sequer impedir que viessem a público as pressões sobre o conselho de administração para manter a sua posição, depois de ter anunciado que se afastaria por uns tempos, em que procuraria tratar-se.
Um adversário menos temível
Porquê agora, ao fim de tantos anos de silêncio? «O que chocou a maior parte das pessoas na indústria do cinema sobre a história de Harvey Weinstein foi que subitamente, por alguma razão, as pessoas pareciam importar-se», escreveu a realizadora Sarah Polley no New York Times. Num artigo que publicou no mesmo jornal, Lena Dunham lembrava que figuras conservadoras como Bill O’Reilly, Roger Ailes, Bill Cosby e Donald Trump foram sendo «rapidamente condenadas» pela mesma «indústria de inclinações liberais» à qual pertencia Weinstein – que aliás participou no início do ano numa das marchas de mulheres que se sucederam à eleição de Trump, em Sundance. Ironicamente, conversas suas que não estarão longe do infame comentário de Trump revelado durante a campanha para as presidenciais – «Quando se é uma estrela, elas deixam-nos fazê-lo. Podemos fazer tudo… Grab ’em by the pussy. You can do anything», dizia o Presidente dos EUA – estão agora a vir a público, e na gravação de uma conversa com Ambra Gutierrez ouvimo-lo dizer, depois de a ter apalpado contra a sua vontade:«Estou habituado a isso, vá lá, por favor».
Numa troca de emails com o SOL, o coletivo feminista português Pipi Colonial (Ana Cristina Cachola, Daniela Agostinho e Joana Mayer) nota que este novo momento vem num tempo de «enormes retrocessos na conquista de direitos, que têm vindo a ser sistematicamente violados em vários contextos geográficos». Não será de pôr de parte o efeito das reações ao «grab ’em by the pussy» de Trump. Mas também não será irrelevante o facto de a Weinstein Company não ter o peso que teve na década de 1990 a Miramax, o que fará de Weinstein – conhecido em Hollywood pelo seu mau feitio, até por Harvey Mãos de Tesoura, pelas alterações que fazia às montagens de filmes à revelia dos realizadores – hoje um adversário menos temível do que fora noutros tempos. E as investigações do New York Times e da New Yorker vieram abrir o espaço que faltava para que muitas outras mulheres viessem confirmar por fim publicamente o que até aqui sobrevivia na forma de boato.
Sabe-se agora que Brad Pitt, por exemplo, terá confrontado Weinsteen por no passado ter assediado Angelina Jolie, que disse agora ter avisado ao longo da sua carreira muitas mulheres dos comportamentos predadores de Weinstein.
Angelina Jolie, Gwyneth Paltrow, Ashley Judd, Rose McGowan, Mira Sorvino, Asia Argento, Rosanna Arquette, Jessica Barth, Emma de Caunes, Judith Godrèche, Cara Delevigne, Léa Seydoux, Lauren O’Connor, Romola Garai, Lauren Sivan, Louisette Geiss, Heather Graham, Kate Beckinsale, Claire Forlani, Minka Kelly, Eva Green, Lena Headey, Ambra Battilana Gutierrez, Lucia Evans, Laura Madden, Katherine Kendall, Emily Nestor, Liza Campbell, Tomi-Ann Roberts, Tomi-Ann Roberts, Zoe Brock, Louise Godbold, a indignação de todas elas deu já uma hashtag, #MeToo, lançada pela ativista Tarana Burke, num movimento que já vai muito para lá de Harvey Weinstein ou mesmo da indústria do cinema norte-americano – esta semana, um conjunto de mulheres artistas, galeristas, curadoras e diretoras de museus e instituições, entre as quais Cindy Sherman, Suzanne Cotter ou Jeny Holzer, publicou no Guardian uma carta aberta em que dizem que a elas, mulheres, nenhuma das notícias de histórias de abusos do último mês as surpreende. E prometem não mais ficar caladas daqui por diante.
‘Não se trata de homens maus’
Depois de o nome de Weinstein ter sido retirado dos créditos de várias produções e de a Apple e a Amazon terem cancelado contratos para a produção de novas séries, suspensa está também por ora a produção da sexta temporada da série House of Cards, que tem Kevin Spacey como protagonista. Como no caso de Weinstein, bastou a primeira denúncia – de Anthony Rapp, que contou que o ator avançou sobre ele quando tinha 14 anos, em 1986, uma denúncia à qual o ator reagiu com um pedido de desculpas por um «comportamento bêbedo profundamente inapropriado» e a revelação da sua homossexualidade, amplamente criticada – para que uma série de outros atores viessem contar histórias semelhantes. E descrições de vários episódios com jovens membros da equipa que criaram «mau ambiente» na rodagem da série agora suspensa. Em Londres, depois de uma outra denúncia envolvendo o nome do ator, o Old Vic lançou mesmo uma linha de apoio às vítimas de Kevin Spacey – e algo semelhante fez a produção da série-bandeira da Netflix. Em Paris, entretanto, ressurge a indignação contra Polanski num protesto de vários grupos feministas, entre eles as Femen, contra a realização de uma retrospetiva à obra do realizador, a decorrer na Cinemateca Francesa.
A bomba explodiu, Hollywood já não tem como travar os estilhaços. «Não queremos que isto nos conduza a um ambiente de caça às bruxas em que qualquer tipo num escritório que pisque o olho a uma mulher tenha de repente que chamar um advogado para se defender. Isso também não está certo. Mas claro que espero que uma coisa destas possa levar a algo benéfico para as pessoas, além da situação triste e trágica», disse Woody Allen à BBC, comentando o escândalo que entretanto tinha feito cair apenas Weinstein, com quem trabalhou em vários filmes. Mas a «caça às bruxas» já começou. Além de Spacey, esta semana surgiram também denúncias contra Dustin Hoffman. Difícil será prever onde esta cascata de acusações e consequências irá dar.
Num artigo publicado na Atlantic com o título Harvey Weinstein e a Economia do Consentimento, a atriz e argumentista Britt Marling faz o exercício de encarar os recentes escândalos de um ponto de vista mais abrangente. «Parte do que nos faz estar sentadas naquela cadeira naquele quarto a suportar o assédio ou abusos por parte de um homem no poder é que, como mulheres, raramente vimos outro fim para nós. Nos romances que lemos, nos filmes que vimos, nas histórias que nos contaram desde que nascemos, as mulheres enfrentam frequentemente fins desastrosos», escreve depois de contar que também ela foi chamada para um quarto de hotel e assediada por Weinstein. «O perigo real do momento presente seria então separarmos os alegados atos de Cosby, Ailes, O’Reilly ou Weinstein de uma cultura que continua a permitir desequilíbrios de poder dramáticos. Não se trata de ‘estes homens maus’. Ou ‘daquela indústria suja’. É ‘este sistema económico desumano’ do qual todos somos parte. Como produtores e como consumidores. Como contadores de histórias e como ouvintes. Como seres humanos. É uma verdade muito desconfortável para acomodar. Mas talvez o desconforto seja aquilo que é necessário para uma mudança em direção a um mundo humano em que todos tenhamos a liberdade de dar o nosso consentimento».