À sombra da rosa…

Ao ler alguns excertos das transcrições das escutas na Operação Marquês, apensas ao processo – e que têm vindo a ser divulgadas na imprensa (desde a tabloide à de referência…) –, o que sobressai, de imediato é o ‘fino recorte’ da linguagem usada pelos interlocutores, oscilando entre a obscenidade e a sementeira de ódios, pessoais…

Fosse apenas isto, e já seria suficiente para desqualificar os autores – que logo revelam a sua natureza mal despem a pose oficial.

O mais grave, porém, é o que está subjacente a esses diálogos, com o ‘estalar do verniz’ denunciador de compadrios sempre negados, de amizades mais do que suspeitas e de um estado de espírito amoral próprio de quem está convencido da absoluta impunidade dessas conspiratas.

É improvável que, fora do circuito da Justiça, dos media e da alta política e da finança, alguém se disponha a ler as mais de quatro mil páginas e apêndices que compõem a acusação finalmente deduzida contra José Sócrates, envolvendo também o seu ‘amigo de peito’ e ‘prestamista’ infatigável Carlos Santos Silva, o ex-banqueiro Ricardo Salgado – que, numa espécie de levitação, se acha ungido do direito de ser «ilibado dessa monstruosidade» –, além de um conjunto de figuras com contornos que costumamos encontrar nas mais sofisticadas novelas policiais e de suspense.

O trabalho exaustivo da investigação, coordenado pelo procurador Rosário Teixeira, ficará decerto para a história judicial portuguesa, desde logo pelo ineditismo de respeitar a um ex-primeiro-ministro e a um ex-banqueiro de linhagem – e, depois, por englobar um sortido de personalidades que ainda há bem pouco tempo gravitavam à nossa volta, como se fossem intocáveis e isentos de qualquer suspeita.

Seja qual for o desfecho em julgamento, quando este se efetuar (e oxalá não vinguem os expedientes dilatórios), estará na barra do tribunal um ‘polvo’ tentacular que o regime consentiu que medrasse, com inúmeras cumplicidades.

Há um inquestionável mérito do Ministério Público, tão vilipendiado, que logrou dar corpo a uma acusação que pôs a descoberto o lado mais podre e promíscuo entre dois mundos, o político e o empresarial.

A democracia não precisa de justiceiros. Mas deve perseguir exemplarmente toda a corrupção, em particular aquela que floresce no interior do Estado.

É neste ponto que emerge uma outra área sensível do processo. O papel dos advogados. Cabe-lhes a defesa dos seus constituintes, com todo o vigor e sabedoria que tenham. Mas sem atropelar a deontologia e ética profissionais, validando enredos nos quais não podem obviamente acreditar.

Por mais de uma vez, deveria a Ordem dos Advogados ter intervindo. Não o fez. Talvez ainda vá a tempo.

Mas, se no perímetro das defesas assistimos a malabarismos equívocos, que dizer das ‘periferias’, onde aparecem causídicos seniores, com nome na praça, a preconizarem com ‘falinhas mansas’ o afastamento do juiz Carlos Alexandre do processo, como aconteceu já na RTP 3, perante uma pivô inexistente?

Há quem se empenhe, em obediências de capela ou de seita, numa liturgia que visa descredibilizar a Justiça, para tentar encobrir ou salvar os confrades em apuros.

A lista das suspeitas que recaem sobre Sócrates é arrasadora. E espanta como é que tantos antigos (e atuais) governantes – incluindo os que se pavoneiam no ‘ofício’ de ‘comentadores’ – nunca tiveram uma dúvida, um sobressalto, em relação ao ex-chefe de Governo e à sua vida de abastança, quando não lhe se conheciam proveitos nem fortuna que bastassem.

Sócrates ficou visivelmente irritado quando um jornalista se ‘atreveu’ a perguntar-lhe na RTP1, quase no final de uma desconversa, «hoje como é que o senhor vive e como paga as suas despesas?». O ‘animal feroz’ não se conteve e respondeu com sobranceria descontrolada.

Poderia ter sido ainda confrontado com as custas judiciais das dezenas de requerimentos indeferidos e com o custo dos advogados que o acompanham e como são pagos. Mas a entrevista ficou por ali, em ambiente crispado.

Sócrates é um ator que tudo fará para descredibilizar a acusação, enquanto os seus advogados continuarão a apostar na secretaria.

Perdeu o país na bancarrota de 2011, e hoje muitos dos seus amigos políticos, com António Costa à cabeça – que foi um dos fieis nos seus governos –, ergueram um ‘cordão higiénico’ e isolaram-no para se protegerem do ‘contágio’. O ‘chavismo à portuguesa’ saiu-lhe mal.

Ele sabe disso, mas não desarma. É exímio na técnica da negação e do martírio. Ao tribunal compete julgar. Mas, até lá, vai correr ainda muita tinta, com armadilhas pelo meio, legais e processuais. À sombra da rosa….