O dinheiro provinha de ‘luvas’ recebidas por Sócrates e, entre 2006 e 2008, estava em quatro offshores tituladas pelo primo e por Santos Silva: a Benguela Foundation e a Gunter Finance, ambas de José Paulo Pinto de Sousa, e a Belino Foundation e a Giffard Finance, ambas de Carlos Santos Silva.
Apesar de a Gunter ter sido aberta por José Paulo em 2005, e de nessa data já ter um recheio confortável, o Ministério Público decidiu restringir o início da análise financeira, para efeitos da acusação, ao ano seguinte.
Em 2006, como recompensa por José Sócrates ter contribuído para o falhanço da OPA da Sonae à PT, saem os primeiros 6 milhões de ‘luvas’ do saco azul do BES para a esfera de José Paulo Pinto de Sousa. Nessa altura, José Sócrates concluía um ano de governo e, apesar de viver apenas do seu vencimento, já levava uma vida de estalo, com base no dinheiro de uma das offshores do primo.
Zé das Medalhas entregava dinheiro em sacos
As offshores tinham vocações diferentes. A Belino e a Benguela assumiam a função de ‘armazenamento’ do dinheiro, a Giffard e a Gunter pagavam as despesas do primeiro-ministro e dos seus familiares e amigos.
A Gunter (de José Paulo) era a que tinha um papel mais ativo neste circuito, segundo o MP. O gestor da conta dessa offshore era Michel Cannals – um dos principais arguidos do caso Monte Branco, tendo-se tornado uma das testemunhas fundamentais dos investigadores da Operação Marquês, ajudando a compreender todo este circuito financeiro.
Também a documentação aprendida a Francisco Canas (o ‘Zé das Medalhas’), o intermediário usado pela rede Monte Branco para introduzir em Portugal as quantias que os clientes mantinham no estrangeiro, tornou-se uma peça-chave do inquérito.
Instalado na sua loja de medalhas na Rua do Ouro, em Lisboa, era aí que os clientes se deslocavam para irem buscar o dinheiro em numerário que este recebera nas suas contas, após transferência efetuada por Canals a partir da Suíça.
Os mais cuidadosos mandavam alguém de confiança. No caso da Gunter, esse papel cabia a Aurélio Alves, funcionário de uma empresa da família Pinto de Sousa e homem de confiança do primo de Sócrates.
Interrogado na Operação Marquês, o funcionário confirmou ser apenas um peão de José Paulo: «Ia ao Canas buscar o dinheiro, a pedido do meu patrão. Da primeira vez que fui lá, ninguém me pediu documentação e entregaram-me o dinheiro para as mãos. Eu pegava no saco, entrava no escritório e entregava-o, como fazia sempre. Não fazia ideia de onde vinha nem para onde ia o dinheiro. Aliás, em grande parte das vezes, nem sabia quanto é que era, eu não conferia o dinheiro. Segundo o que ele [José Paulo] me dizia, era tudo na base da confiança. É claro que sabia que era dinheiro. Se aquilo era na base da confiança, não ia estar ali a desconfiar».
Michel Canals também referiu, no interrogatório realizado pelos investigadores do MP, que se recusava a transportar notas de um país para outro, pelo que Francisco Canas era uma peça fundamental para a movimentação do dinheiro: «Eu não transportava dinheiro, pois podia ser apanhado na alfândega ou assaltado. As notas eram só com o Canas. Ia lá se precisasse de mandar dinheiro para lá [Suíça], ou se um cliente precisasse cá em numerário, entregava-o a ele [Canas]».
Em cada transação, Francisco Canas (entretanto falecido, em janeiro deste ano) ficava com 1% do respetivo valor.
Dinheiro para família e amigos
Dos mais de dois milhões de euros transferidos para Francisco Canas, 289.813 euros foram levantados por José Paulo Pinto de Sousa e 165.191 euros foram usados para pagar a conta do seu cartão de crédito.
Muitos dos luxos de Sócrates, como se disse, eram pagos pelo primo. Ambos chegaram a passar férias no hotel Pine Cliff, em Albufeira, e foi José Paulo quem suportou a conta. De acordo com o testemunho de Elisabete Bernardo, uma das empregadas daquele empreendimento, vários familiares e amigos dos Pinto de Sousa passavam férias no Algarve à conta de José Paulo.
A mesma funcionária testemunhou que, nas férias de 2006, «tinha ido a família toda, inclusive o irmão [de José Sócrates], e o total da conta foi um valor grande que depois foi pago em dinheiro».
«Foi algo que me ficou na memória pela situação em si, não pela pessoa (…), mas porque tive de contar o dinheiro. Ainda era novinha e, pelo volume do dinheiro, tive de pedir ajuda. Era a primeira vez que tinha recebido tanto dinheiro. Era entre 10 e 15 mil euros», explicou. A mesma funcionária lembra-se ainda de, numa ocasião, o primo de José Sócrates «ter deixado 200 euros [de gorjeta] na receção»: «Tive de dar 400 euros de troco. As notas tinham um valor facial muito elevado, de 500 euros, e era difícil arranjar troco».
Primo disponível 24h por dia
José Paulo não pagava apenas os luxos de José Sócrates. Tinha de estar disponível 24 horas por dia para atender aos seus pedidos. Mesmo que as exigências implicassem deslocações a Paris ou Genebra, bastava Sócrates mandar que José Paulo obedecia, sem colocar qualquer objeção, como se vê na conversa que tiveram em março de 2013:
«José Sócrates (JS) – Quando é que vens cá [a Paris]?
José Paulo – Quando quiseres…
JS – Ok, então vamos falando».
Já em julho desse ano, numa conversa com o irmão António, José Paulo comenta as obrigações que tem para com o primo:
«José Paulo – O outro entrou no avião para o Brasil. Ligou-me a dizer para mandar o senhor ir ter ao Rio de Janeiro…
António – Se ele mandou, tem de ser…»
Noutras conversas, os irmãos Pinto de Sousa referem-se a Sócrates como «o chefe». Estas formas de tratamento levam o MP a defender que existe uma atitude de «subserviência» perante Sócrates – que, a troco de sustentar a família, coloca-a a trabalhar para si de acordo com as suas necessidades.
Entre as pessoas que beneficiaram do dinheiro de Sócrates estava a sua mãe, Maria Adelaide Pinto de Sousa, que afinal não tinha os cabedais que mais tarde serviram a Sócrates para justificar a sua vida faustosa. Maria Adelaide também necessitava de injeções regulares de capital na sua conta. Entre março de 2006 e março de 2010, foram efetuados depósitos em numerário num total de 104.050 euros – e o MP defende que este dinheiro, cuja origem foi a conta da Gunter Finance, só foi depositado graças às entregas efetuadas por Francisco Canas.
Mãe também falava em código
No seu interrogatório, Maria Adelaide foi confrontada pelos investigadores com os vários pedidos de dinheiro que fez ao filho. Ela justiçou que pedia um apoio financeiro «sempre que precisava» e que o fazia porque «não gostava de se deslocar até ao banco».
A verdade é que foi apanhada várias vezes nas escutas telefónicas a fazer pedidos de forma dissimulada. Numa conversa, Maria Adelaide (hoje com 86 anos) explica ao filho que «está depenada». Obrigada a explicar-se, pois o filho não percebera, acrescenta «estou sem penas». E, já irritada, faz-lhe o desenho: «Vou dizer uma coisa, vê se entendes por meias palavras… O andar precisa de mais».
Sandra Santos foi outra das pessoas que partilharam a almofada financeira do ex-primeiro-ministro, do qual era amiga íntima. Entre novembro de 2006 e novembro de 2014 recebeu 102.300 euros em transferências bancárias, sem contar com as despesas em viagens e hotéis.
Os pedidos de ajuda de Sandra, que vivia sozinha na Suíça com o filho menor, mas que se deslocava a Portugal sempre que a Sócrates picava a saudade, eram constantes. Num sms, chora-se: «Desculpa, mais uma vez não vou poder ir. Luís está com bronquiolite asmática… Preciso muito da tua ajuda, estou numa situação financeira difícil, juro pelo meu filho, que é a pessoa que mais amo neste mundo, que não me estou a aproveitar, eu peço-te porque és a única pessoa que pode-me ajudar». Quando José Sócrates lhe pergunta pela quantia necessária, ela faz a lista: «3000. Para poder pagar o aluguer da casa 1350, estou a dever ao banco 1260 e não tenho dinheiro para as compras, obrigado, eu devo-te imenso, não consigo dormir». «Ora, deixa lá. O nosso amigo vai-te mandar como habitualmente, ok?», acalma-a Sócrates.
Além destas ajudas, as viagens da Suíça para Portugal eram também a expensas do amigo, bem como as férias no Algarve.
Contas bancárias não refletiam os rendimentos
Também a empregada doméstica da mãe de Sócrates, Maria Rita, recebeu entre maio de 2006 e fevereiro de 2008 um total de 10.420 euros, provenientes de Francisco Canas e com origem na Gunter.
Maria Rita, que trabalhava igualmente para Sócrates e para o irmão deste, foi outra das pessoas que revelaram dados importantes para a investigação. Interrogada em fevereiro de 2015, confessou que, ultimamente, não recebia o ordenado, pois «a dona Adelaide não tem dinheiro». «Não tinha rendimentos e deu tudo o que tinha ao filho. Nomeadamente, o dinheiro da venda das casas e também de uma poupança», acrescentou.
O irmão de Sócrates, António Pinto de Sousa (já falecido), também recebeu dinheiro do irmão oriundo daquela conta na Suíça. Entre 2006 e 2008 entraram na sua conta bancária, através de depósitos em numerário, 73.970 euros.
E até a mãe da sua ex-mulher, Maria Lili Campos, recebeu 100 mil euros – tendo justificado ao MP que se tratava de dinheiro que emprestara ao genro quando este estava em Angola. Na verdade, porém, esse dinheiro veio também da Gunter para António Pinto de Sousa, para que este conseguisse pagar a casa que tinha adquirido no Estoril e onde residia quando morreu, em 2011.
Segundo o MP, todas estas pessoas auferiam rendimentos baixos, que não justificavam o dinheiro que possuíam nas suas contas: Maria Adelaide tem uma pensão de 250 euros, Maria Rita recebia um ordenado de 650 euros e os rendimentos anuais de António Pinto de Sousa variaram, entre 2006 e 2008, entre 16.718,68 euros e 10.026,49 euros.