Itália acordou ontem com aquela pesada sensação de ressaca a fazer lembrar os domingos depois de um sábado à noite bem regado. Quando os acontecimentos da véspera começam a regressar aos poucos à memória, ainda nos tentamos convencer de que algumas daquelas situações não passam de um pesadelo ou, pelo menos, de uma manifestação deturpada do que realmente passou.
Neste caso, os italianos não têm a mesma sorte. A noite de segunda-feira aconteceu mesmo: o jogo em San Siro terminou como começou (0-0) e a Itália vai ver o Mundial da Rússia pela televisão, 60 anos depois de tal ter acontecido pela última vez. E como se isso já não bastasse, ainda há as imagens de um Buffon em lágrimas a despedir-se do futebol internacional: o homem que detém o recorde de jogos por uma seleção principal (175), o homem que ia bater o recorde de participações num Mundial (seria a sexta), campeão do mundo em 2006, um cavalheiro por natureza. Na hora do amargo adeus, o homem que em janeiro próximo completa 40 primaveras pediu desculpa por fazer chorar as crianças que, como ele, só queriam ver o seu país na competição de seleções mais importante do futebol.
Além de Buffon, também De Rossi e Barzagli, os únicos campeões do mundo em 2006 que ainda faziam parte da seleção, anunciaram o adeus às cores nacionais. O médio da Roma considerou este um “momento negro” para o futebol italiano e pediu uma reflexão profunda e um recomeço à federação italiana – isto, já depois de ter protagonizado um dos momentos da noite: com a Itália a precisar urgentemente de marcar um golo, o selecionador mandou-o aquecer. De Rossi, cujas características são sobretudo defensivas, insurgiu-se contra a ordem, apontando para Insigne (avançado do Nápoles que estava sentado no banco ao seu lado) e lembrando que a Itália precisava de vencer. Nenhum dos dois acabou por entrar… e a Itália não marcou.
Debaixo de fogo está o selecionador, Giampiero Ventura, mas também toda a estrutura federativa italiana. Paolo Cannavaro, irmão de Fabio (campeão do mundo em 2006) e ainda jogador do Sassuolo, teceu duras críticas ao modo como o futebol italiano tem sido gerido nos últimos anos, apontando falhas sucessivas que levaram a este desfecho. “Perdemos o Mundial há 15 anos quando, graças à lei do trabalho, chegaram a Itália muitos jogadores de todo o mundo que tiraram o lugar aos nossos jovens. Demos-lhes dinheiro, glória e formação graças aos nossos técnicos italianos. Espero que hoje, ao termos tocado no fundo, possamos refundar o nosso futebol. Que se vão as múmias que gerem o futebol italiano e demos espaço aos jovens em campo”, atirou, num discurso a fazer lembrar o “É preciso varrer a porcaria que há na Federação portuguesa” de Carlos Queiroz em 1993.
Entretanto, a Federação Italiana de Futebol marcou de facto uma reunião de emergência para o dia de hoje, para analisar o fracasso da seleção na fase de qualificação para o Mundial 2018 e tomar decisões para o futuro. “Estamos profundamente feridos e desapontados com a qualificação falhada para o Mundial da Rússia. É uma derrota desportiva que precisa de uma solução partilhada”, escreveu o presidente do organismo, Carlo Tavecchio.
Uruguai no trono que ninguém quer Um cenário que assume contornos de escândalo para a Itália, mas que é bem conhecido por três campeões do mundo. Como os próprios italianos, que já haviam falhado o Mundial em 1958 depois de terem ganho a prova – e logo duas vezes, em 1934 e 1938.
Esta será a primeira vez em 12 anos que um antigo campeão mundial falha a competição: o último havia sido o Uruguai, em 2006. Os uruguaios, de resto, são os recordistas neste registo indesejado: campeões em 1930, logo na primeira edição, e depois em 1950, no célebre Maracanazo, já falharam oito fases finais: 1934, 1938, 1958, 1978, 1982, 1994, 1998 e 2006.
Inglaterra é o outro país que completa este triste ramalhete. Campeões do mundo na edição em que acolheram a prova, em 1966 – na melhor participação de sempre de Portugal (terceiro lugar) –, os ingleses viriam depois a falhar a presença de forma consecutiva em 1974 e 1978 e ainda em 1994, nos Estados Unidos – nestas duas últimas edições, ficaram a fazer companhia ao Uruguai como os únicos dois antigos campeões ausentes.
Desde 1930, foram oito os países a conquistar o mais desejado título de seleções: Uruguai, Itália, Alemanha, Brasil, Inglaterra, Argentina, França e Espanha. Os brasileiros – únicos que nunca falharam uma única edição – são os recordistas, com cinco vitórias. Italianos e alemães, com quatro, vêm logo a seguir. Uruguai e Argentina conseguiram ambos duas conquistas, enquanto Inglaterra, França e Espanha festejaram por uma vez a conquista do mundo.