Durante séculos foi o palácio dos Reis de França, acumulando os tesouros artísticos de sucessivos monarcas. Em 1793, após a Revolução ter decapitado Luís XVI e Maria Antonieta, abriu as portas a qualquer vulgar cidadão como Museu Central das Artes da República. O objetivo era educar os franceses e, ao mesmo tempo, servir de lugar de formação de artistas, que podiam deslocar-se ali para ver e aprender com os mestres do passado e até copiar as suas obras-primas.
Entretanto o Louvre tornou-se uma Meca não apenas para amantes de arte, mas para turistas em geral. A remodelação concluída em 1989, que ergueu a icónica pirâmide de vidro de I. M. Pei no Pátio Napoleão (a obra evoca a campanha de Bonaparte do Egipto, que enriqueceu o Louvre com milhares de artefactos egípcios) trouxe um novo fôlego a uma instituição cheia de história. O sucesso de O Código da Vinci, bestseller de Dan Brown de 2003 que começa justamente com um homicídio naquelas galerias, veio ainda reforçar o seu estatuto, que se traduz em longas filas de espera e em números que impressionam: perto de 10 milhões de visitantes em 2012, valor que foi decaindo devido aos sucessivos atentados de Paris mas que ainda assim se situa atualmente nos 7 milhões anuais.
Mais de duzentos anos após a sua abertura ao público, o ‘museu dos museus’ volta a abrir-se ao exterior, agora com a inauguração de uma filial em Abu Dhabi, Emirados Árabes Unidos.
Na cerimónia de abertura, na passada quarta-feira, Emmanuel Macron disse que o novo museu está na linha da frente da «luta contra os discursos de ódio» e citou Dostoievski, dizendo que «a beleza pode salvar».
Porém, além de um acontecimento cultural de grande magnitude, o novo Louvre é um negócio de milhões. O documento do acordo assinado entre os Governos francês e dos Emirados, datado de 6 de março de 2007 e válido por 30 anos, especifica o rol de pagamentos: 165 milhões de euros para a Agência Internacional dos Museus de França; 13 milhões de euros por ano, num total de 195 milhões, para exposições (a organizar, claro, pela casa-mãe); 190 milhões de euros para empréstimos de obras; 400 milhões para poder usar o nome – ou a marca… – Louvre, a pagar faseadamente de cinco em cinco anos; e ainda 25 milhões para mecenato destinados ao desenvolvimento da sede em Paris. Total: 975 milhões de euros, valor que não inclui o edifício.
Chuva de luz
Também o projeto do novo museu foi encomendado a um francês, Jean Nouvel. Situado na ilha artificial de Saadiyat (‘ilha da felicidade’, em arábico), integra aquele que é provavelmente o mais ambicioso projeto de desenvolvimento imobiliário a decorrer no mundo, orçado em qualquer coisa como 15 mil milhões de euros.
Da primeira vez que visitou o local, a partir do seu helicóptero Nouvel viu apenas um pedaço de areia plantado no meio das águas do Golfo Pérsico. Hoje, o seu edifício rivaliza em protagonismo com outras construções opulentas e arranha-céus de vidro ultramodernos nas suas imediações.
O projeto demorou uma década a concretizar. A sua característica mais distintiva é a dupla cúpula de 180 metros de diâmetro trabalhada numa espécie de filigrana composta por 7850 estrelas metálicas, que cria um efeito que o arquiteto descreve como uma «chuva de luz» que varia consoante a posição relativa do Sol. O edifício, continua Nouvel, «procura criar um mundo acolhedor combinando serenamente luz e sombra, reflexão e calma. A sua arquitetura torna-o um lugar de convergência e correlação entre o imenso céu, o horizonte do mar e o território do deserto. A cúpula imprime no espaço a consciência do tempo e do momento por meio de uma luz evocativa de uma espiritualidade própria». Além do edifício em si, o francês desenhou também todo o mobiliário e até a iluminação.
Encontros raros
«Um livro aberto sobre a história da humanidade»: é assim que o diretor científico da Agência dos Museus de França, Jean-François Charnier, define o novo museu. A sucursal arábica do Louvre tem como objetivo mostrar a história da humanidade a uma nova luz, revelando afinidades entre diferentes culturas. Nas suas galerias (doze no total), a caligrafia pode aparecer lado a lado com a escultura, obras de arte decorativa podem surgir em pé de igualdade com pinturas. Charnier chama a atenção para a pioneira «descompartimentação do museu» e diz que o método permite criar «diálogos inesperados entre artefactos».
Todo o conceito expositivo passa aliás por colocar diferentes culturas em diálogo, através de doze diferentes núcleos: ‘As Primeiras Aldeias’, ‘As Primeiras Potências’, ‘Civilizações e Impérios’, ‘Religiões Universais’, ‘Rotas de Comércio Asiáticas’, ‘Do Mediterrâneo ao Atlântico’, ‘O Mundo em Perspetiva’, ‘A Magnificência da Corte’, ‘Uma Nova Arte de Viver’, ‘Um Mundo Moderno?’, ‘Desafiando a Modernidade’ e ‘Um Palco Global’, com um total de 600 obras desde a Pré-História à contemporaneidade. Destas, 300 são empréstimos de museus e monumentos franceses, número que decrescerá à medida que o novo Louvre for constituindo as suas próprias coleções.
O edifício, continua Nouvel, «deseja pertencer a um país, à sua história, à sua geografia, sem se tornar uma tradução plana, o pleonasmo que resulta em tédio e convenções. Também visa enfatizar o fascínio gerado por encontros raros».
E é disso mesmo que se trata – de ‘encontros raros’ – quando temos possibilidade de apreciar uma pintura de Leonardo da Vinci numa ilha artificial ao largo de Abu Dhabi. La Belle Ferronière, do pintor toscano, é uma das estrelas da abertura do museu. Mas há outras, muitas outras, como o imponente Napoleão Atravessando os Alpes, de Jacques-Louis David, O Rapaz do Pífaro, de Edouard Manet, ou um Auto-Retrato de Vincent Van Gogh de 1887.
O plano inicial da ilha previa que o Louvre não estivesse sozinho, replicando, de certo modo, o modelo da Ilha dos Museus, em Berlim, criada após a II Guerra Mundial como pólo cultural.
Na realidade, este deveria ser apenas um de cinco super-museus assinados por arquitetos mundialmente famosos, a que se juntariam o Museu Nacional Zayed, do ateliê de Norman Foster; o Guggenheim, um ‘monstro’ sete vezes maior do que o de Nova Iorque, da autoria de Frank Gehry; o Museu Marítimo, do japonês Tadao Ando; e um Centro de Artes, da iraquiana Zaha Hadid, com as linhas fluidas e futuristas que constituem a marca registada dos edifícios da arquiteta desaparecida em 2016. No entanto, a crise financeira de 2007-2008 e a queda abruta dos preços do petróleo vieram atrasar o desenvolvimento deste mega-projetos e o Louvre é, para já, o único que saiu do papel – ainda que também com atrasos consideráveis, uma vez que a data prevista de inauguração apontava, inicialmente, para 2012.
Mas não foi apenas a derrapagem dos prazos a colocar o novo Louvre no centro da controvérsia. Aquando da assinatura do protocolo entre os governos francês e do emirado, perto de cinco mil profissionais dos museus, arqueólogos e historiadores da arte assinaram uma petição para que o projeto não avançasse. E houve mesmo quem defendesse que a França estava «a vender a alma». A quem, não especificaram. Mas não é difícil adivinhar.