Pela primeira vez desde que há quase quatro décadas ascendeu ao poder, Robert Mugabe era esta quarta-feira uma figura irrelevante nos comandos do Zimbabué, país que só o teve a ele como líder desde que é independente. Caiu, pelo menos em termos práticos, com um golpe anunciado na segunda-feira e terça se deu praticamente sem sangue.
Esta quarta estava detido na sua residência oficial, em Harare, são e salvo, como disse num telefonema ao presidente sul-africano, Jacob Zuma. Ninguém sabia ao certo ao início da noite se a mulher, Grace, peça fundamental nas lutas pela sucessão no poder, estava com ele detida na capital ou se, como avançavam vários relatos e dirigentes do partido do governo, cruzara a fronteira com a Namíbia.
Os líderes militares do golpe desmentem que as manobras de terça-feira, incluindo a detenção domiciliária do presidente e a aparente perseguição da mulher, não constituem um golpe de Estado e que Mugabe continua no poder. “Estamos apenas a atingir os criminosos à sua volta que estão a cometer crimes e que estão a causar o sofrimento social e económico no país, para os apresentar à justiça”, disse o general Sibusiso Moyo, o homem que se ocupou da emissão televisiva do jornal da noite de terça.
Em parte, Moyo diz a verdade. O golpe dirige-se não propriamente contra o poder do presidente de 93 anos, mas contra a sua mulher, Grace, e o grupo de militantes no ZANU-PF sob o seu comando, que até esta semana se preparavam para suceder a Mugabe.
O golpe é o culminar da luta pelo poder nos bastidores iniciada há cerca de dois anos, quando a saúde do mais velho chefe de Estado no mundo começou a degradar-se à vista de todos. Grace Mugabe entrou subitamente na política por esses dias e criou à sua volta a chamada fação dos G-40, composta pelos militantes mais novos do partido no poder e pela primeira geração de líderes não guerrilheiros.
Grace movimentou-se com velocidade, mobilizou apoios e perturbou a linha de sucessão que há anos se vinha preparando. Na semana passada, porém, a primeira dama e os seus apoiantes deram um passo em falso ao afastarem o vice-presidente Emmerson Mnangagwa, uma grande figura do poder no Zimbabué e o único capaz de ultrapassar Grace no congresso partidário que em dezembro decidirá a linha de sucessão para as eleições do próximo ano.
Ultimato e golpe
A manobra espoletou o golpe e sentenciou a ambição de poder de Grace. Mnangagwa é um veterano da política do Zimbabué, passou muitos anos como braço direito e mão de ferro do presidente e participou com ele nos massacres étnicos em Gukurahundi, em 1983, nos quais morreram mais de 20 mil civis às mãos do jovem governo de Mugabe, que chegara ao poder três anos antes.
É também um político próximo do principal partido da oposição e um antigo guerrilheiro. Na segunda-feira que se seguiu à sua demissão, vários generais zimbabuanos, entre os quais o chefe das Forças Armadas, Constantino Chiwenga, puseram as cartas em cima da mesa e lançaram um ultimato muito claro contra Grace e a sua fação G-40: a purga de militantes “com um passado na [luta de] libertação” teria de acabar, caso contrário os militares tomariam armas.
O ultimato, afinal de contas, revelou-se uma declaração de intenções e os militares agarraram nas armas logo na terça.
Várias colunas de tanques e outros veículos blindados começaram a avançar a passo lento no início da tarde em direção à capital. A guarda do presidente e outros órgãos de poder habitualmente associados a Mugabe não retaliaram e o poder caiu sem violência na mão dos militares, que parecem estar em conluio com o vice-presidente demitido, Mnangagwa, e o líder da oposição, Morgan Tsvangirai.
Os únicos disparos ocorreram durante a noite na residência do ministro das Finanças, um dos líderes do G-40, Ignatius Chombo. Acabou detido, como vários dirigentes da fação, mas dois seguranças morreram na troca de tiros.
Harare parecia esta quarta indiferente aos acontecimentos de terça. A vida na capital seguia com normalidade, salvo por meia dúzia de veículos armados e os militares que revistavam apenas alguns carros. “Somente mudámos a frente do comboio”, explica ao “New York Times” Chris Mutsvangwa, próximo do ex-vice-presidente, que é já considerado o líder de facto e, segundo avançavam esta quarta figuras dos dois grandes partidos, se prepara para comandar um governo de transição com a oposição de Tsvangirai.
Não é certo qual o papel destinado a Mugabe, que há muito vem assegurando abandonar o poder apenas na morte. O seu caminho, no entanto, está no fim, como o da sua mulher. Mesmo que até esta semana isso parecesse impossível. “Não pensei que este dia alguma vez chegasse”, conta à Reuters Rumbi Katepfu, lojista de Harare. “Pensava que Mugabe e Grace eram invencíveis.”