Eric Toussaint, economista especialista em dívidas soberanas, não tem dúvidas quando afirma que “parte da dívida portuguesa é claramente odiosa ou, pelo menos, ilegítima”. Para o belga, “devia ser constituída uma auditoria à dívida para identificar a parte que é ilegítima e odiosa”, medida encetada no passado por executivos, como o do Equador. Toussaint considera ainda que “o governo português deveria suspender o pagamento da dívida e impor aos credores uma redução radical da dívida”, “sabendo que não é fácil defender esta posição em Portugal”.
Mário Centeno, ministro das Finanças, pronunciou-se, há uns meses, sobre a possibilidade de se reestruturar a dívida portuguesa: “É interessante, mas apenas no plano intelectual”. “Não se pode lutar contra o mercado”, enfatizou o ministro. A estratégia de Centeno passa por não combater – nem enfurecer – o mercado, procedendo-se ao pagamento da dívida, inclusive antecipadamente. Em 2017 espera diminuir a dívida para os 126% do PIB e, em 2019, para 120%. A bem sucedida emissão de dívida a 10 anos desta segunda-feira por 1,9% de juros parece corroborar a estratégia do ministro, não estivessem as taxas das dívidas soberanas europeias a ser corrigidas no mercado secundário, rondando, hoje, os 1,955%, com o prolongamento do quantitative easing do BCE de Mario Draghi, prolongado até setembro de 2018.
Opinião distinta tem Toussaint: “Se se reduzir a dívida pagando-a, reembolsando-a, acho que não é uma boa decisão”, disse ao i à margem do Plano B, organizado pelo Bloco de Esquerda. Ainda que a dívida seja reduzida em cerca de 10% até 2019, continuará a ser o dobro do previsto pelas regras europeias, que estipulam que as dívidas públicas dos Estados-membros da zona euro não podem ser superiores a 60%.
“Sei que imensa gente pensa que não existe qualquer questão de legitimidade ou ilegitimidade da dívida”, mas isso é “uma posição errada”, confessa. “Como é que o país acumulou tanta dívida? Para que propósito? Em que condições? Quem lucra com a dívida?”, são algumas das questões que o belga considera merecerem respostas para se apurar a legitimidade da dívida, algo que não é abordado nem exigido politicamente por este governo. “É muito importante para os cidadãos de cada país compreenderem o porquê da dívida ter aumentado tanto” nos últimos anos, “relacionando-a com o tipo de integração que a economia portuguesa tem na zona euro”.
O economista adianta com a importância dos “resgates dos bancos privados” e a “venda de vários destes bancos ao Santander e à LoneStar”. Toussaint não responsabiliza apenas o “governo de Passos Coelho”, mas também “este governo” socialista de António Costa, que “manteve a venda dos bancos privados sem confrontar os responsáveis pela falência”. Mudam-se os governos, mas permanecem as vontades, poder-se-ia acrescentar.
A dívida sufoca o povo grego
Para além de ter um vasto currículo a estudar as intervenções do Fundo Monetário Internacional nas economias em desenvolvimento, Toussaint fez também parte da Comissão de Auditoria à Dívida Soberana Grega do parlamento helénico, liderado por Zoe Konstantopoulou. Neste, explica o economista, retiraram-se inúmeras conclusões, umas constituem novidade e outras nem tanto. “É muito claro que a maior parte da dívida grega pertence à troika”, disse, sendo que “85% da dívida pertence a 14 Estados-membros da zona euro” por meio do Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira, para além do Fundo Monetário Internacional e do Banco Central Europeu. A Comissão também demonstrou que “a dívida foi acumulada para salvar os bancos privados, principalmente franceses, alemães, belgas, holandeses e italianos”, que foram “apoiados pelo diretor do BCE, [na altura] Jean-Claude Trichet” e por [José Manuel] “Barroso, na altura presidente da Comissão Europeia, e por Dominic Strauss-Khan, então diretor do FMI”. A Comissão provou que a “dívida não foi contraída no interesse do povo grego nem dos povos europeus”, concluindo que as “condições impostas à Grécia violaram vários tratados internacionais que protegiam os direitos económicos, políticos, culturais e sociais dos cidadãos gregos”.
Como explicou o economista, “de acordo com a lei internacional, existem dois critérios para se definir que uma dívida soberana é odiosa: se tiver sido acumulada contra os interesses do povo e se os credores o sabiam”. Segundo Toussaint, “os credores sabiam-no [que a dívida foi contraída contra os interesses do povo grego] perfeitamente, pois foram eles próprios a ditarem as condições” de reformas estruturais neoliberais e medidas de austeridade, o que faz com que a dívida seja “odiosa, mas também ilegal em vários aspectos”. Um deles é precisamente o facto do parlamento grego não ter sido “consultado sobre os Memorandos, mas forçado a votá-los sem a possibilidade de propor emendas”. “O povo grego não foi responsável pelo aumento da dívida”, concluiu o especialista.
“A dívida e o seu pagamento são insustentáveis”, garantiu Toussaint. “Hoje, encontra-se nos 180% do PIB”. Por sua vez, e no seu último relatório, o FMI previu que a dívida grega aumente em 2017 para os 180,2% e, em 2018, para os 184,5%. Outros economistas, como Kostas Lapavitsas, também têm reafirmado a insustentabilidade da dívida, defendendo a sua reestruturação ou até o seu não pagamento, ao mesmo tempo que a relacionam com a própria estrutura da zona euro, que produz desequilibrios entre as distintas economias europeias.
O belga denuncia ainda o que considera ser uma “campanha mediática, incluindo com declarações de líderes europeus, como Jeroen Dissjelbloem, líder do Eurogrupo até janeiro, ou [Christine] Lagarde, presidente do FMI, que afirma que os gregos não pagam os seus impostos, que são preguiçosos ou até mesmo que o Estado Social grego é demasiado generoso”. Apesar desta campanha “muito bem escrita contra os gregos”, o economista reafirmou a necessidade de se “explicar aos povos português, italiano, alemão, francês e espanhol qual é a real situação” no país. Na Grécia, cerca de 20,9% da população ativa encontra-se desempregada, 42,8% da população ativa jovem não consegue arranjar trabalho e quase 1,5 milhões de gregos vivem em pobreza extrema, segundo dados da Autoridade Estatística Helénica.
A própria Comissão também se deparou com a forte oposição das instituições e líderes europeus, bem como com a falta de apoio do primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras. “Quando começámos o nosso trabalho, Tsipras apoiava-nos oficialmente, mas na realidade estava sob a pressão dos credores”, denuncia Toussaint, que acusa o primeiro-ministro de se ter “submetido” à “chantagem para não usar o nosso trabalho publicamente, para não questionar publicamente a legitimidade da dívida”. Hoje, Tsipras não fala sobre a reestruturação da dívida, quanto mais sobre o seu não pagamento.
Depois da capitulação do governo Syriza, em agosto de 2015, e da realização de eleições legislativas antecipadas a 20 de janeiro, o novo presidente do parlamento grego, Nikos Voutsis, ordenou o encerramento da Comissão. “Foi encerrada e disseram-nos para irmos buscar os arquivos às instalações do parlamento”. Para Toussaint, o mais grave não foi o cancelamento do grupo de trabalho, mas “o facto de terem apagado do website do parlamento todas as informações sobre a Comissão”. Foi como se tivessem relevado a Comissão de Auditoria à Dívida Grega para os anais da História, para o “caixote do lixo da História”. Ainda assim, cada novo anúncio de aumento da dívida soberana grega parece dar razão a Toussaint e à Comissão em que participou, mesmo que ter razão sirva de pouco quando os argumentos de nada valem.