As comportas abriram-se nos Estados Unidos e delas jorra um largo caudal de retaliação contra a violência sexual machista que existe desde que o tempo é tempo. Ou desde o momento pré-histórico em que o homem se apercebeu de que podia usar os seus genitais para mais do que o óbvio e servir-se deles como uma “arma de gerar medo”, como argumenta Susan Brownmiller no livro que publica em 1975, “Against Our Will: Men, Women, and Rape”. “Tem de ser encarada como uma das mais importantes descobertas dos tempos pré-históricos, a par do uso do fogo e do primeiro machado tosco de pedra”, defende. “Até aos dias de hoje, a violação representou uma função crítica. É nada mais que um processo consciente de intimidação através do qual todos os homens mantêm todas as mulheres em estado de medo.”
As comportas abriram-se e o seu jorro dá por estes dias em revelações quase diárias e mais ou menos violentas contra figuras mais ou menos poderosas. O caudal corre acima de tudo nos Estados Unidos e, no mais imediato, tem um rasto claro: Harvey Weinstein, o poderoso produtor de Hollywood que ao longo de décadas atacou, chantageou e perseguiu dezenas de mulheres que, de uma forma ou de outra, se viam apanhadas na vasta rede de influência que montou no cinema americano. Em muitos sentidos, o caso Weinstein tem os elementos fundamentais de um momento de viragem. A natureza explícita das denúncias, por exemplo, a sua violência, o número de mulheres agredidas, a ideia de que a sua violência sexual sobreviveu ao longo de vários anos como um segredo mal guardado e a profundidade das duas investigações – uma no “New York Times” e outra na “New Yorker” – abriram indesmentivelmente as comportas.
A expressão “a América de Weinstein” usa-se por estes dias com uma conotação positiva. Procura descrever um estado diferente, “uma passagem cultural”, como escreve este mês David Remnick, o diretor da “New Yorker”, recuperando a passagem anterior de Susan Brownmiller.
A designação descreve as comportas abertas, as mesmas que desde o final de outubro varreram pelo caminho figuras tão poderosas e díspares como o ator Kevin Spacey e o político republicano favorito para o lugar de senador do Alabama, Roy Moore (ver texto ao lado). “A janela da revolta está aberta”, escreve Rebecca Traister, jornalista que há anos aborda o feminismo na América e a cultura de violência sexual machista na “NY Magazine”, e que desde o caso Weinstein diz receber cerca de 20 emails todos os dias, sobretudo escritos por mulheres, revelando casos de abusos sexuais no trabalho.
“Subitamente há espaço – ar – para as mulheres falarem. Para gritarem, na realidade”, argumenta Traister, sublinhando a forma como, pela primeira vez na sua carreira, os poderosos estão a perder os empregos e o poder. “Isto não se trata do feminismo que conhecemos no seu renascimento contemporâneo – encapsulado em ensaios, organizações não governamentais, peças de Eve Ensler ou performances da Beyoncé nos VMA. Essas coisas têm o seu lugar e são importantes à sua própria maneira. Isto é diferente. Isto é ao estilo dos anos 70, orgânico, em massa, uma raiva radical que explode em direções imprevistas. É ensurdecedor graças ao megafone humano que são as redes sociais e as ‘redes de sussurros’ nas quais agora se fala menos em voz baixa do que em mensagens frenéticas e maiúsculas em chats de grupo.”
O espaço de que fala Traister, no entanto, não é responsabilidade apenas de Wein-stein. As comportas já estavam prontas a rebentar no ano passado, quando o tema de abusos sexuais contra mulheres em posições de inferioridade explodiu na América sob a forma de um vídeo gravado em 2005, no qual Donald Trump, na altura candidato à presidência, dizia para um microfone que não sabia estar ligado: “Beijo logo. Nem sequer espero. E quando és uma estrela, elas deixam-te fazer isso. Podes fazer o que quiseres. Agarrá-las pela cona [sic]. Podes fazer tudo.” Esse momento pareceu ser o abrir das comportas para Trump. O seu momento Weinstein. Nas semanas que se seguiram, mais de 20 mulheres contaram histórias de assédio sexual às mãos do candidato. A morte eleitoral de Trump foi anunciada, o seu candidato a vice-presidente quase o abandonou, o seu partido também. No fim, venceu Hillary Clinton. “Há muitas maneiras de enquadrar e entender a eleição, mas uma delas é certamente esta: um misógino que é praticamente um desenho animado venceu uma feminista inteligente”, diz Remnick.
Traister argumenta que a eleição de Donald Trump pode ter contribuído mais para a retaliação de hoje contra a cultura de violência sexual do que mesmo o caso Weinstein. Desde a sua eleição, por exemplo, dois dos principais defensores e nomes do conservadorismo americano, o ex-patrão do canal Fox News, Roger Ailes, e o seu comentador mais conhecido, Bill O’Reilly, foram afastados ao revelar-se que passaram anos a esconder casos de abusos sexuais com acordos milionários em tribunal. O desfecho aconteceu antes do caso Weinstein, mas já era um sinal do jorro. Nas palavras de Traister: “Estas eleições tornaram-se uma das maiores metáforas sobre o que aconteceu em milhões de situações mais pequenas, em todas as nossas vidas no trabalho. Que é: o homem nojento que te apalpou, ou se insinuou, ou retaliou contra ti conseguiu o melhor emprego de todos.”
As acusações que por estes dias são lançadas contra o candidato a senador no estado do Alabama, Roy Moore, seriam suficientes para afundar qualquer candidatura em qualquer país. A mais grave de todas é a de que, em 1979, Moore, na altura um assistente para o procurador distrital do estado do Alabama, levou para casa uma habitante local chamada Leigh Corfman e lá beijou-a, tirou-lhe a roupa e apalpou-a. Moore tinha na altura 32 anos e Corfman era uma menor com 14 anos.
Na mesma reportagem em que o jornal “Washington Post” revelou o caso, três outras mulheres acusam Roy Moore de se ter envolvido com elas quando elas eram apenas adolescentes. As denúncias continuaram nos dias que se seguiram à reportagem, muitas corroboradas pelos relatos de familiares que souberam dos casos antes de surgirem em público. Ontem, por exemplo, mais quatro mulheres denunciaram o candidato ao lugar de senador do Alabama por assédios sexuais – todos quando elas eram adolescentes ou estavam no começo da casa dos 20 anos.
Moore recusa-se a abandonar a corrida e afirma que tudo se trata de um ataque político lançado não apenas pelos progressistas no Partido Democrata, mas também pelos próprios republicanos que supostamente representa. Os líderes do partido do presidente, com efeito, já o denunciaram em público e pedem-lhe agora que abandone a corrida. Moore nunca foi o seu candidato e concorre como um evangelista cuja imagem de marca é ser um fora da lei. É assim que enquadra a sua defesa: Moore contra todos – e contra as sondagens, que o dão 12 pontos atrás do seu rival democrata.
A corrida de Moore revela mais para além do momento de retaliação contra a violência sexual na América. Moore só existe hoje porque os republicanos abriram as portas em 2010 a uma linha de novatos políticos dispostos a atirar para todo o lado: o conhecido “Tea Party”, que não o abandonou ainda. “Evidentemente que zanguei algumas pessoas”, dizia Moore no início desta semana. “Sou o único que posso unir democratas e republicanos porque me oponho a ambos.”