A Comissão Liquidatária do Banco Espírito Santo (BES) arrasa Ricardo Salgado e o seu braço direito Amílcar Morais Pires num parecer que entregou há dias no Tribunal do Comércio de Lisboa e em que defende que a conduta de ambos e de outros onze administradores causou ao BES «um prejuízo patrimonial assaz grave».
Depois de terminar o julgamento da insolvência (em 2016), a Comissão Liquidatária considerou existirem motivos para abrir um incidente com o objetivo de que a ‘falência’ seja considerada culposa. A juíza Elisabete Assunção considerou fazer sentido o pedido desta comissão e o incidente foi aberto – deste novo processo só poderão ser extraídas consequências civis, como a inibição de os ex-administradores do BES virem a exercer funções durante um determinado período.
O parecer com cerca de 350 páginas, que o SOL consultou nos últimos dias é o início deste novo processo cujo julgamento só deverá começar daqui a uns meses ou mesmo anos. E, dada a complexidade, até já há um procurador do Ministério Público em exclusivo para o caso – Paulo Gonçalves.
O documento separa os cinco pontos em que, segundo a comissão – à qual competem funções de administração da insolvência –, houve culpa ou violação dos deveres dos administradores: as cartas de conforto emitidas a favor de Founden e Bandes, a intermediação de instrumentos de dívida emitida por entidades do Grupo Espírito Santo (GES), a concessão de crédito a entidades do GES, o financiamento ao BES Angola e ainda a emissão de instrumentos financeiros, recompras e consolidação de sociedades veículos.
Além de Ricardo Salgado e Amílcar Morais Pires, o documento atribui responsabilidades aos ex-administradores António Batista do Souto, Joaquim Goes, Jorge Martins, José Manuel Espírito Santo Silva, José Maria Ricciardi, João Freixa, Rui Silveira, Stanislas Ribes, Manuel Espírito Santo Silva, Pedro Mosqueira do Amaral e Ricardo Abecassis Espírito Santo Silva.
Crédito à ESFIL e a culpa de Salgado
Depois de expor os diversos alertas feitos pelo Banco de Portugal ao BES para os perigos da exposição da instituição bancária a entidades do Grupo Espírito Santo (GES) e de outros grupos, o parecer da Comissão Liquidatária descreve a forma como os avisos foram ignorados, assistindo-se ao aumento de financiamentos, alguns de forma exponencial e sem garantias. Tudo isto no ano de 2014, numa «altura em que várias das sociedades em causa, nomeadamente as integrantes do GES, já evidenciavam dificuldades financeiras».
A primeira entidade a ser analisada é a Espírito Santo Financière (ESFIL), detida a 100% pela Espírito Santo Financial Group (ESFG): «No dia 31/12/2013, a exposição total do BES à ESFIL ascendia a aproximadamente 29 milhões de euros. Contudo, no primeiro semestre de 2014, tal exposição cresceu significativamente, passando a ascender a uma quantia aproximada de 482 milhões de euros».
Neste caso, refere o documento, a exposição do BES à sociedade foi sempre superior aos limites autorizados e sem que tivessem sido prestadas garantias. Por pagar ficaram 463 milhões que obrigaram à constituição de uma provisão, inicialmente de 469.563.000 euros, mas mais tarde a mesma teve de ser atualizada para um valor superior – mais um milhão de euros.
Como a ESFIL foi declarada insolvente no final de 2014 pela Justiça luxemburguesa, o BES apresentou-se como credor, mas até agora não recebeu qualquer montante.
Sobre este financiamento, a comissão não ficou com qualquer dúvida: «Terá sido promovido pelos requeridos Ricardo Salgado e Amílcar Morais Pires que, por intermédio de Isabel Almeida [ex-diretora financeira do Banco Espírito Santo], terão proposto aumentar os limites de exposição do BES à ESFG, inicialmente sem sequer contemplar a constituição de garantias que salvaguardassem a posição creditícia do BES».
E tudo o que fizeram foi de forma consciente, segundo a Comissão Liquidatária, que considera que «Ricardo Salgado e Amílcar Morais Pires terão violado os deveres de lealdade que devem pautar a conduta de um administrador ao não atuarem em prol dos interesses do BES, que administravam, mas sim em prol de interesses de terceiros».
É ainda referido que, apesar de não participarem diretamente, os restantes administradores tiveram conhecimento de tudo o que estava a ser feito, não tendo tentado nada «para mitigar ou inverter a situação».
Financiamento de risco à Rio Forte
Uma situação idêntica aconteceu com a Rio Forte, sociedade que era detida pela Espírito Santo International (ESI). Por sua vez, a Rio Forte era detentora de 49,3% da ESFG, via ES Irmãos. O parecer lembra ainda a relevância da ESFG, que detinha 35% do próprio BES.
É no meio de todas estas ligações perigosas que entre dezembro de 2013 e junho de 2014 nasce mais um crédito que se viria a tornar numa exposição do BES a mais um risco elevado: no final de 2013 não havia qualquer crédito, «contudo, no dia 31/06/2014, o crédito total concedido passou a ascender a aproximadamente 160 milhões de euros, na sequência do contrato de crédito e da facilidade de descoberto bancário».
Tudo isto levou a que fosse necessária a constituição de uma provisão, ou seja previsão de potenciais perdas nas contas, de perto de 171 milhões. Uma provisão que , segundo o parecer, «contribuiu, juntamente com outras situações […], para o agravamento da situação financeira e patrimonial do BES e, a final, para a insolvência do banco».
Também sobre este financiamento, o parecer conclui que o mesmo foi impulsionado por Salgado, «sob coordenação de Amílcar Morais Pires», que por sua vez era «coadjuvado por Isabel Almeida».
Dinheiro para Escom sem controlo
No caso da exposição ao grupo Escom, esta cresceu de cerca de 45 milhões de dólares em 2008 para 248 milhões em 2014. As dúvidas de que estava tudo em roda viva são poucas: a Comissão Liquidatária frisa mesmo que «as sociedades do Grupo Escom que contraíram crédito junto do BES, em momento algum, terão apresentado documentação de prestação de contas objeto de aprovação explícita por parte dos seus órgãos sociais e/ou da Escom Investments BV (Holanda), empresa-mãe, que pudesse ser analisada pelo departamento do BES com responsabilidade na elaboração das propostas de crédito».
Além disso, não foi apresentada informação que permitissem ao BES avaliar a viabilidade económico-financeira das empresas devedoras e nem sequer, como deveria ter acontecido, foram constituídas quaisquer garantias: «Deste modo, a concessão de financiamento pelo BES ao grupo Escom não terá observado as regras mínimas para a concessão de crédito que deveriam ser atendidas».
Quanto aos responsáveis pela concessão de financiamento, o parecer lembra que era o conselho de crédito (CDFC) o responsável pela tomada da decisão, sendo que em última análise cabia à Comissão Executiva ratificar as operações. Por tudo isto, defende-se que os administradores presenciaram, entre 2007 e 2014, as sucessivas concessões de financiamento a sociedades que sabiam não apresentar contas e que não tinham qualquer análise de rating, nem garantias – «o que ocorria em plena violação da política de concessão de crédito do BES».
A concluir, é referido que os financiamentos à Escom Mining Development, Escom Mining Inc, Escom Kimberlites, Escom Real Estate e Escom Goods & Trading se traduziram «numa perda material para o BES, por via das imparidades estimadas» e contribuíram «para o agravamento da situação financeira».
Sabiam de tudo do BESA mas Faziam de conta que não
Um dos capítulos do parecer da Comissão Liquidatária é dedicado em exclusivo à concessão de créditos ao BES Angola (BESA) entre 2011 e 2014 – operações que não respeitaram o «interesse do BES» nem «os seus normativos internos e regras e deveres de gestão criteriosa, prudente e ordenada a que se encontram sujeitos os administradores de uma instituição de crédito». O prejuízo para o BES neste caso foi de mais de 3 mil milhões de euros.
Uma das irregularidades a que se dá mais atenção é a ausência de garantias do BESA, referindo-se que aquela que foi dada pelo Governo de Angola no final de 2013 foi «póstuma ao crédito concedido pelo BES ao BESA, pelo que deverá entender-se que a política de gestão de risco do BES foi violada».
«As dificuldades financeiras do BESA, ao longo do período em referência, terão sido do conhecimento dos requeridos. Não obstante, a concessão de crédito ao BESA continuou a aumentar, por conseguinte, a inerente exposição do BES ao BESA», refere a Comissão Liquidatária, esclarecendo que nas demonstrações financeiras do BES de agosto de 2014 foi inscrito um valor de perdas potenciais por créditos concedidos ao BESA de 2,8 mil milhões.
O parecer é particularmente duro com as irregularidades na concessão de créditos ao banco angolano, salientando que «existia uma realidade grave que desaconselhava o nível de exposição que o BES assumiu» e que «não se compreende tal nível de exposição, quando o BES não recebia juros do crédito concedido ao BESA, não tinha informação diária sobre a liquidez existente no BESA aquando da autorização das operações de crédito, e, muito menos, quando esta carecia de liquidez, por não conseguir receber fundos do mercado monetário interbancário local».
Refere-se ainda que «não fosse a concessão de crédito efetuado pelo BES ao BESA […] o BES não teria sofrido os prejuízos em análise».
Também neste caso foi o conselho de créditos o responsável pela decisão de conceder financiamento, sendo que também a comissão executiva tinha nas suas mãos a ratificação – aliás, todas as operações passaram pelo crivo desta comissão na qual participavam todos os administradores indicados neste incidente. Porém, a partir do final de 2013, refere o documento entregue no Tribunal do Comércio de Lisboa, as operações passaram a ser aprovadas apenas por António Souto, Joaquim Goes e João Freixa.
Ricardo Salgado, Morais Pires e os restantes administradores sabiam de tudo o que estava a acontecer em Angola, mas agiam como se nada soubessem. «Nem após a emissão de garantia soberana, que evidenciava um problema grave a respeito da carteira de crédito do BES Angola, os requeridos adotaram uma postura diferente, compatível com a diligência de um gestor criterioso e ordenado», acusa a comissão.
Salgado mandou vender papel comercial da ESI
Para a Comissão Liquidatária não restam dúvidas, depois de tudo o que já foi analisado, que foi Ricardo Salgado quem determinou a colocação de «títulos de dívida da ESI diretamente junto de clientes do BES», e que foi Amílcar Morais Pires quem determinou a aprovação da documentação necessária para que tivesse lugar a referida comercialização. Os administradores agora implicados neste parecer terão tido um papel central na disponibilização em si do instrumento de dívida. Sendo que «José Maria Ricciardi e Joaquim Goes, tendo o pelouro do risco […] não procederam, como deviam, à análise do (elevado) risco associado à colocação de títulos de dívida da ESI e da Rio Forte junto de clientes».
Em junho de 2014, estas operações obrigaram ao reconhecimento de possíveis perdas de cerca de 590 milhões de euros.
Segundo a Comissão Liquidatária, além de tudo o que falhou internamente, «Ricardo Salgado, José Manuel Espírito Santo e José Maria Ricciardi conheciam a deficitária situação financeira da ESI e da Rio Forte e decidiram, ainda assim, comercializar junto dos clientes do BES o papel comercial emitido por aquelas sociedades, em manifesta violação dos deveres a que estavam adstritos no exercício das suas funções de administradores do BES».
As outras irregularidades
Quanto às cartas de conforto emitidas a favor de Fonden e Bandes, duas entidades domiciliadas na Venezuela, o parecer conclui que as mesmas foram determinadas por Salgado e José Manuel Espírito Santo, enquanto administradores do BES. Das mesmas resultava a prestação pelo BES de uma garantia do bom cumprimento das obrigações contraídas pela ESI, que estava já numa situação muito complexa: «[Fizeram-no] cientes da débil situação financeira da ESI e da Rio Forte e de que o incumprimento destas era iminente».
Apesar de se defender que as referidas cartas poderiam até nem ser consideradas legais, o parecer esclarece que as mesmas levaram a uma nova provisão de 267.243.000 euros, registada a 30 de junho de 2014.
E, por fim, no que respeita à emissão de instrumentos financeiros, recompras e à consolidação de sociedades veículos, as conclusões do parecer também trazem duras críticas à antiga administração do BES e apontam para que tudo foi decidido ao arrepio das normas e sem pensar no interesse do banco.
Os antigos administradores, segundo a comissão, «terão determinado e/ou teriam conhecimento, e não evitaram, a implementação de um circuito de triangulação, designadamente, através de SPVs [sociedades veículo], que permitiu a colocação, a partir de determinada data, de dívida emitida pelo BES, tendo aumentado a exposição do banco e/ou dos seus clientes a tais entidades».
Com as mais valias geradas terá sido paga dívida do GES e enquanto isso criava-se prejuízos ao BES.
A insolvência culposa
A Comissão Liquidatária – composta por César Brito, Miguel Alçada e Joana Soares Martins – considera que foram as condutas que elencaram ao longo das mais de 300 páginas que «terão gerado um prejuízo global para o BES de cerca de 5,9 mil milhões de euros, o que conduziu, ou agravou, inelutavelmente, a situação de insolvência em que se encontra».
Deixando claro que o apuramento de responsabilidades deve ser feito tendo em conta os diferentes níveis de culpa ou influência de cada um dentro do BES, o parecer é inequívoco quanto à necessidade de implicar os 13 antigos administradores do banco na qualificação da insolvência como culposa.
Nos próximos dias, serão enviados para o Tribunal do Comércio de Lisboa documentos adicionais, alguns dos quais, a pedido da comissão, só ficarão disponíveis aos intervenientes processuais por se tratar de ‘matéria sensível’.