Era agosto e o sol da Sicília queimava, inclemente. Em Capaci, nos arredores de Palermo, à beira da estrada de alcatrão que se notava novo, uma placa singela assinalava o lugar exato onde o juiz Giovanni Falcone, a mulher e os guarda-costas morreram, atingidos os automóveis onde viajavam por um atentado: 400 quilos de explosivos detonados à distância haviam sido colocados numa conduta debaixo da autoestrada A29. Tão forte foi a deflagração que os sismógrafos a registaram. Estávamos a 23 de maio de 1992.
Salvatore “Totò” Riina festejou a morte de Falcone com champanhe e 57 dias depois fez o mesmo quando o atentado contra outro juiz, Paolo Borsellino, acabou com resultado idêntico. O patrão da máfia siciliana julgava ter assim encostado o Estado italiano à parede, mostrando todo o poder que o crime organizado tinha na Sicília; ao invés, quase pôs em causa a sobrevivência da própria Cosa Nostra. Poucos meses depois, a 13 de janeiro de 1993, Riina seria detido.
“A Besta”, alcunha que ganhou por ser violento e implacável, morreu numa cama do hospital da prisão de Parma onde cumpria várias penas perpétuas (por ter ordenado pelo menos 150 assassinatos, mas os especialistas falam em mais) e continuava a puxar os cordelinhos da organização criminosa. O homem que assassinou todos os seus rivais nos anos 1980 e 90 continuou a dirigir a Cosa Nostra a partir do isolamento da sua cela, mas o poder da organização nunca mais foi o mesmo. Mesmo assim, as suas ameaças ao procurador antimáfia Nino Di Matteo foram ouvidas e este vive hoje sob proteção policial.
Como refere John Dickie, autor de “Cosa Nostra – História da Máfia Siciliana”, citado pelo “Guardian”, “uma das ironias do reinado de Riina é que, detendo todo o poder, centralizando o poder numa extensão sem precedentes, esse seu poder foi uma catástrofe para a Cosa Nostra”. A ambição de criar uma nova ordem na política e nos negócios, qual Estado dentro do Estado, obrigou as autoridades a agir e a justiça carregou forte contra a máfia siciliana. E a sociedade civil também se juntou em campanha contra os impostos cobrados pelos mafiosos.
A morte de Riina é também a morte da velha escola, da clandestinidade, do submundo. Hoje, a máfia aligeirou a rudeza, veste-se com fatos caros, move-se nos negócios e na política como parte legítima da estrutura social. Lava o seu dinheiro através de fachadas legais, negócios que pagam os seus impostos como outros quaisquer: supermercados, empresas de transporte rodoviário, imobiliário, até parques eólicos. Através da compra de propriedades e dos bancos, o dinheiro movia-se através do espaço europeu e mesmo além-Atlântico.
Símbolo da violência extrema, da rudeza sem desculpas, Riina já não pertencia a este mundo. Agora, a máfia compra em vez de matar ou ameaçar – tudo se faz na sombra. “Podemos compará-lo a Pablo Escobar”, o antigo líder do cartel colombiano de Medellín, afirmou à BBC Federico Varese, especialista em máfia da Universidade de Oxford. “Ambos lançaram um ataque direto contra o Estado que provocou uma retaliação.”
Salvatore Riina nasceu em Corleone, a cidade no interior da Sicília que serviu de inspiração para o nome do personagem principal do livro de Mario Puzo “O Padrinho”. Don Corleone saltaria depois para o cinema, adaptado por Francis Ford Coppola, que o dividiu em três filmes. Riina chegou ao poder da máfia de Corleone em meados dos anos 1970, controlando o tráfico de heroína para os Estados Unidos, onde a guerra do Vietname tinha criado um mercado de viciados. Consolidou o seu poder com base numa implacável perseguição a todos aqueles que poderiam pôr em causa o seu poder na Sicília.
A violência era a sua forma de reinar e preferia intimidar o poder a comprá- -lo. Sem quaisquer limites. Mandou raptar um miúdo de 13 anos, depois morto por estrangulamento e o corpo dissolvido em ácido, só para enviar uma mensagem a quem quisesse virar-se contra ele. As mortes de Falcone e de Borsellino foram só mais duas na longa lista de desafios ao Estado, ao governo e à justiça, mas ditariam a sua queda. Hoje, à beira da estrada em Capaci, o monumento em homenagem a Giovanni Falcone (e a Francesca Morvillo, Rocco DiCillo, Antonio Montinaro e Vito Schifani, que com o juiz morreram nesse dia 23 de maio de 1992) é mais impressionante nas dimensões, tal como a estrada. Riina é ainda lembrado pelos mais velhos em Corleone como alguém que dava empregos a todos; os mais novos preferem que o seu nome se apague para que o da cidade possa ganhar outra vida para lá da violência.