O surto de legionela confirmado num hospital público dá que pensar. A inércia e a negligência do Estado chegaram ao setor da Saúde, depois da floresta ardida, ateada por mãos criminosas e pela inconsciência de uns quantos. A insegurança e a incerteza tornaram-se moeda corrente e tomaram conta da nossa paisagem coletiva. O balanço deste ano é trágico e trouxe o luto a muitas famílias.
A lista oficial de mortes aumentou em poucos meses. Somaram-se as vítimas dos incêndios florestais às da queda de uma árvore centenária na Madeira e, agora, às da legionela contraída no Hospital de S. Francisco Xavier. Em todas, o mesmo denominador comum: irresponsabilidade. É demais.
Há dois países em Portugal que vivem de costas voltadas.
O país interior, pobre e desertificado, de aldeias abandonadas ou quase vazias, paradas no tempo, por onde a vida escorre conformada.
E o país litoral e urbano, frenético, a regurgitar de turismo e de startups, onde se constroem hotéis a um ritmo já patológico e onde os governantes gostam de passear-se, deslumbrados e desengravatados, pelos palcos de uma qualquer Web Summit, a aliviarem-se da terra queimada e das vidas e haveres estupidamente perdidos. The show must go on…
Ao contrário do fascínio pacóvio pela festa permanente, na vizinha Galiza, também flagelada por incêndios florestais, arregaçaram-se as mangas e meteram-se mãos à obra para tratar os terrenos carregados de cinzas, antes de o Inverno chegar em força. Cortaram-se as árvores ardidas, preveniu-se a contaminação dos cursos de água e ergueram-se barreiras de contenção. Indemnizaram-se as famílias das vítimas. Uma reportagem da RTP mostrou-o há dias. E por cá, que se fez? É de recear que muito pouco para o que deveria estar a ser feito.
A história, inexorável, repete-se. As promessas sucedem-se às desgraças – e, quando os media ‘fazem agulha’ para outro sítio, desce um espesso nevoeiro.
Em novembro de 2014, o surto de legionela em Vila Franca de Xira foi considerado um dos mais mortíferos do mundo, lançando o alarme na população local. Três anos depois, nem as famílias das vítimas foram indemnizadas, nem as empresas infratoras julgadas. O processo segue a tramitação lenta a que a Justiça portuguesa nos habituou. Empurrou-se ‘com a barriga’ até onde foi possível, e não se aprendeu nada.
O Hospital de S. Francisco Xavier herdou, no Restelo, o desleixo das empresas de Vila Franca. O Estado voltou a falhar.
Houve uma pressa inusitada da administração hospitalar em isentar de culpas as ‘cativações’ das Finanças – fazendo lembrar a faísca de trovoada seca ‘descoberta’ pela Judiciária nos incêndios de Pedrógão. Repete-se a história mal contada.
O silêncio do PCP e do Bloco de Esquerda, contrastando com a algazarra de outrora por muito menos, traduziu bem o embaraço da coligação de esquerda perante a sucessão de episódios deploráveis.
O reaparecimento da legionela, com contornos preocupantes, incomodou o Governo, ainda na ressaca das luzes do sortilégio tecnológico. Faltava só as redes sociais indignarem-se com o jantar Web Sumitt no Panteão. Polémica, aliás, providencial.
O evento, embora impróprio para o espaço em causa, foi uma deriva oportuna da agenda mediática para diluir o impacto sério de mais mortes por incúria.
Com a leveza que o caracteriza, António Costa achou a realização do jantar no local «ofensiva» e «absolutamente indigna», remetendo as culpas, como é costume, para uma regulamentação criada no Governo anterior.
Ninguém lhe perguntou, todavia, porque não alterara ainda o regulamento, ou se o jantar não constava do programa oficial; e por que não se abespinhara antes com outros eventos no Panteão, até de iniciativa de uma empresa pública. Ou, mais remotamente, em 2013, quando presidia ao Turismo de Lisboa, e este teve a mesma luminosa ideia. Lapsos…
Para Marques Mendes, na sua homilia semanal na SIC, «estamos a banalizar os mortos e isso é muito grave». De facto, não faltam banalizações.
Está banalizar-se a impunidade, como sucedeu em Tancos. Está a banalizar-se o ‘apuramento de responsabilidades’, que não dá em nada. Estão a banalizar-se os inquéritos, que não passam de artifícios para arrefecer os ânimos e passar adiante. Está a banalizar-se a pequena e a grande corrupção. E está a banalizar-se a hipocrisia e a falta de vergonha em nunca se assumir o que corre mal.
Não há afetos que compensem a sensação de abandono a que estão votados os segmentos mais vulneráveis da sociedade portuguesa, sem lugar nos telejornais nem capacidade reivindicativa, que pressentem o Estado a desmoronar-se e muitos a aproveitarem-se dele.
Governar não pode ser um ‘baile de máscaras’. Nem um estado de negação permanente…