Riade. O epicentro de um mundo discrepante

Poucas cidades espelham melhor do que a capital da Arábia Saudita o labirinto de contradições no qual se alicerça um dos países mais opulentos do globo. Numa sociedade que abriga debaixo do mesmo teto modernidade e tradição e que é palco de estilos de vida totalmente distintos, perdura um regime opressor e segregador, aqui retratado…

“A Arábia Saudita nunca mais será a mesma, a chuva começa com um pequeno pingo.” “Um passo importante na direção certa.” “O governo saudita sabe que não pode haver qualquer reforma sem envolver toda a sociedade.” Frases como estas – a primeira pertencente à ativista saudita Manal al-Sharif, a segunda ao secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, e a terceira ao diretor do jornal saudita de língua inglesa “Arab News”, Faisal J. Abbas – invadiram as redes sociais e as páginas de muitos jornais ocidentais no final de setembro e ajudam a retratar a realidade social num dos mais intrigantes países do globo. O motivo? O decreto assinado pelo rei Salman que lançou as bases para a extensão do direito de condução às mulheres na Arábia Saudita.

Em todos os testemunhos, o desejo de algo melhor para o futuro sobrepõe-se ao da celebração pelo levantamento da proibição do usufruto de um direito que, aos olhos de grande parte da comunidade internacional – e particularmente da ocidental -, é um direito básico. Mas o impedimento da condução a pessoas do sexo feminino é apenas um dos muitos elementos exemplificativos de segregação que sustêm uma das sociedades mais desiguais do mundo e onde as diferenças são as verdadeiras definidoras do estilo de vida e da própria existência de cada um. Ao contraste social gritante que existe entre homens e mulheres podem somar–se ainda os mundos opostos dos ricos e dos pobres, ou dos ocidentais e dos restantes migrantes. Todas estas vivências convergem num espaço que, para além de umbilicalmente ligado ao fenómeno religioso, consegue ser ao mesmo tempo evoluído, arcaico, contemporâneo, conservador e moderno.

A corrente wahabita sunita da lei islâmica – oriunda do Corão e da tradição (a chamada suna) – é a principal fonte de direito do reino da Arábia Saudita, pelo que toda a organização social, administrativa e económica do país resulta daquela linha de interpretação da palavra do profeta Maomé. É ela que explica a segregação das mulheres na vida pública, o cumprimento à risca de todos os deveres e cultos religiosos, a existência de uma polícia religiosa e a fiscalização estatal de tudo o que passa nos jornais, televisões, websites e filmes.

É precisamente a polícia religiosa que zela pelo acatamento da xaria no espaço público. A Mutaween – ou Comissão para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício – é responsável por garantir que as mulheres têm a burca ou a abaya corretamente vestida, que não andam acompanhadas com elementos do sexo masculino desconhecidos ou que possuem as autorizações escritas de um homem da família para poderem trabalhar, viajar ou estudar. Tem ainda poderes para intervir em situações de comercialização ou consumo de substâncias proibidas – como o álcool ou a carne de porco -, encerrar estabelecimentos comerciais durante as cinco orações diárias ou o período de jejum do mês do Ramadão, apreender discos e DVD’s considerados ofensivos para o islão ou para a família real e deter pessoas por prostituição ou comportamentos homossexuais. 

O cumprimento da lei islâmica na Arábia Saudita explica também a aplicação de sentenças judiciais aos infratores tidas como controversas aos olhos ocidentais. Crimes como protestar contra as autoridades, organizar atividades ou eventos para homens e mulheres considerados inapropriados, consumir álcool, distribuir pornografia ou roubar podem ser punidos com penas de prisão, amputações ou chicotadas. Homicídio, violação, traição, terrorismo, tráfico de droga, blasfémia, adultério, bruxaria, renegação ou atividades homossexuais redundam habitualmente em pena de morte, que pode ser aplicada por enforcamento ou decapitação (literalmente) em praça pública – a Deera, de Riade, é muitas vezes referida como “praça chop chop”.

Contraste e adaptação

Marjory Woodfield chegou à capital da Arábia Saudita para ficar por 12 meses, mas só saiu seis anos depois. Nas suas crónicas regularmente publicadas pela cadeia britânica BBC e pelo portal neozelandês Stuff explica a sua experiência em Riade, que descreve como um “oásis que perdeu há muito o verde” e um local de “contradições como nenhum outro”. “A sua vasta riqueza, oriunda do petróleo e de milhares de membros da família real, que gozam uma vida de luxo e privilégios, contrasta totalmente com aqueles que não pertencem à linhagem. [Há] mulheres a pedir nas ruas, muitas vezes com temperaturas de 50 graus, normalmente com bebés ao colo”, escreve. E contrasta também com a realidade da mão-de-obra barata oriunda de países subdesenvolvidos. Milhares destes imigrantes são contratados para fazer o trabalho que os sauditas não gostam de fazer – como limpar as ruas ou trabalhar na construção civil – e muitos têm os seus passaportes “apreendidos” pelos próprios empregadores.

Em contraste, para aqueles que, como Woodfield, habitam nos chamados compounds – resorts habitados quase exclusivamente por europeus e ocidentais – ou trabalham no bairro diplomático, Riade consegue ser “o que quisermos que seja”, mesmo com todas as suas restrições. Quem o confirma é Luís, um português que já leva dois anos a residir e trabalhar em Riade. “[Nos compounds] vive-se ao estilo ocidental, num ambiente semelhante ao que se vive na Europa”, conta ao i

São justamente as orações diárias e outros hábitos de ordem religiosa que obrigam um ocidental a programar ao pormenor a sua vida fora dos resorts. “Durante as orações, as lojas fecham, pelo que, se estivermos dentro de um supermercado, há que organizar o tempo devidamente para podermos chegar à caixa e pagar antes de os funcionários desaparecerem”, exemplifica Luís. 

Uma preciosa ajuda para os expatriados, sugere Woodfield, são as aplicações para telemóvel, através das quais se definem alarmes automáticos antes das orações ou se identificam as mesquitas mais próximas. Saber identificar os locais de oração num mapa pode ser meio caminho andado para um condutor lograr evitar as ruas mais movimentadas ou aquelas que ficam completamente bloqueadas à hora das preces. 

Conduzir em Riade, aliás, pode ser uma experiência bastante assustadora para quem vem de fora. Luís compara-a com “uma autêntica corrida de karts”, tendo em conta o completo desprezo dos sauditas pelas regras de trânsito. E isto em pistas completamente apinhadas de carros, muito por culpa da rede de milhares de motoristas exclusivamente contratados para transportar as mulheres, que ainda não podem conduzir.

A não existência de cinemas, teatros ou concertos – justificada pelos intérpretes do Corão pelos riscos de poderem despertar emoções inapropriadas – dificulta também a procura de distrações. Se os sauditas usam as horas livres para fazer compras, ver televisão em casa ou organizar piqueniques, os ocidentais dependem muitas vezes das representações diplomáticas para diversificarem as suas atividades de lazer. “Por vezes, as embaixadas promovem eventos ou passam filmes. É uma oportunidade para se compensar essa lacuna”, refere Luís, sem guardar, no entanto, qualquer rancor às restrições impostas pela sociedade saudita. “As regras não são para discutir, são para seguir. Somos estrangeiros num país com hábitos diferentes, há que respeitar e seguir em frente”, afiança.

A extensão do direito de condução, mas também de voto, às mulheres, ou a recente permissão da sua entrada em estádios de futebol são demonstrativas do esforço da nova liderança saudita para abrir a sociedade ao resto do mundo e alterar alguns dos hábitos mais segregacionistas. Mas ainda há um caminho longo a percorrer. 

De um ponto de vista puramente económico, Luís acredita que um dos principais objetivos do plano reformista “Visão 2030” – uma estratégia idealizada pelo príncipe herdeiro para reduzir a dependência da Arábia Saudita do negócio do petróleo através de uma diversificação nos setores da economia, infraestruturas, educação, saúde, turismo e lazer – é o de “reduzir a dependência das empresas sauditas de quadros oriundos de empresas estrangeiras”, através da integração dos seus jovens nos “projetos estruturantes que decorrem atualmente no país”. 

Quanto à abertura da sociedade ao exterior, o cidadão português entende-a como um “processo gradual” e recorda: “Estas evoluções demoram anos, gerações… Há que continuar a percorrer esse caminho.”